A roda reinventada

A roda reinventada

Oscar Bessi

publicidade

Foi preciso o assombro. Primeiro, pistoleiros do tráfico executam a tiros um grupo de médicos, num quiosque à beira da praia, só porque um deles tinha a infelicidade de se parecer com o líder miliciano ali de perto. Dias depois, milicianos queimam uma infinidade de ônibus e tocam o terror porque um integrante do bando deles foi morto em confronto com a polícia. As notícias mostram o povo do Rio de Janeiro com medo. Um homem simples, do povo, filmando com seu celular e dizendo, contrariado: “trabalhador só se ferra”. E, como para corroborar que estatística só serve mesmo é para marqueteiros maquiarem discursos políticos, e não para quem quer resolver problemas de verdade, alguém ainda tenta salvar a paçoca dizendo “mas nãos e apavorem, são os menores índices de homicídios nos últimos vinte anos!”. Bah! Até piada de mau gosto tem que ter ética suficiente para entender quando não é o momento de ser dita. Estamos falando de vidas perdidos, de caos, de medo. De trabalhadores sem poder ir ganhar seu sustento e estudantes sem poder ir à escola. Aos milhares.

Gerou assombro internacional. Talvez competindo em horror e compaixão às tantas vítimas inocentes, aos olhos dos que vem tudo de fora, com as desumanidades que acontecem às pencas na Ucrânia e no Oriente Médio. E talvez por este assombro gerado, discursos se apressarem em correr aos microfones anunciando a mais nova e inédita ofensiva contra o crime dentre tantas já realizadas e que nunca mudaram, de fato, coisa alguma. E a roda ressurge, reinventada pela enésima vez. Cada vez mais bicuda. Forças armadas, especialistas cheios de discursos floreados e teorias mágicas, dedos em riste apontando feitos e defeitos. Mais um programa governamental lançado. Que vai durar até o esquecimento e a necessidade de ser lançado o próximo pacote, provocado por outra tragédia de repercussão na mídia, e assim até a próxima, e a próxima, e a próxima.

Há décadas que o Rio de Janeiro enfrenta problemas graves na área de segurança pública. Já houve tempo de sobra para resolver, se houvesse seriedade. Se houvesse vontade e essa vontade fosse focada, determinada e única, não apenas um estardalhaço temporário a serviço de propagandas político-partidárias. O povo já saberia conviver com menos medo em seus trajetos para o trabalho, de ônibus ou metrô, se tudo não se resumisse a meras reinvenções da roda para seguir tudo no mais do mesmo, trocando apenas as autorias alardeadas, os nomes pomposos e as frases de efeito no marketing. Mas fica a impressão de que, enquanto essas tragédias, essas mortes, essa violência banal de uma guerra não abalar o sambódromo ou o Maracanã lotado, tudo será empurrado com a barriga. Tudo será paliativo sem compromisso. E os especialistas seguirão mantendo seus empregos de especialistas, sempre convocados para encontrar todas as saídas sem resolver coisa nenhuma 


Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895