Ainda sobre Aracelli e impunidade

Ainda sobre Aracelli e impunidade

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Em Jaquirana, nos campos de cima da serra gaúcha, me preparo para um dia intenso de debates com estudantes e cidadãos sobre o tema da violência, abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes. É a feira do livro local e uma iniciativa da prefeitura municipal e do SESC/RS. A semana é propícia, pois 18 de maio é o dia nacional de reflexão sobre o tema. Aniversário daquele que talvez seja um dos mais vergonhosos casos criminais da história brasileira. Porque nem o fato da vítima ser uma criança, nem a brutalidade dos assassinos impediu uma rede de corrupção, impunidade e censura. Tudo ancorado e respaldado no regime vigente. Que era, como vimos por esses dias, implacável com seus opositores, mas benevolente com seus amigos “cidadãos de bem”. Mesmo que fossem criminosos brutais.

Com apenas 08 anos, Aracelli, menina pobre, era filha de um eletricista de Serra/ES, e uma boliviana. A suspeita é de que a mãe de Aracelli mantinha contatos no seu país de origem e fornecia drogas a pessoas influentes da capital capixaba, de um dos quais seria amante - tio de um dos jovens ricos e poderosos que se acredita serem autores do crime. O grupo tinha mansões e apartamentos só para orgias de drogas e sexo. Esse rapaz, segundo contam, passava os dias de carro cuidando a saída dos colégios, à caça de novas presas. Nunca se soube quantas crianças e adolescentes foram vítimas dos seus abusos e farras. Segundo testemunhas, ele se divertia não só com o sadismo de sua violência sexual, mas também com a certeza da impunidade garantida pela “importância” da família.

Aracelli foi enviada pela mãe a um desses apartamentos de luxo com um envelope cheio de drogas. E talvez só soube disso quando os playboys não a deixaram partir e se iniciou a sessão de tortura e horror. Até onde a mãe dela sabia o que podia acontecer à filha é outra incógnita. O corpo da criança foi encontrado uma semana depois, num matagal. Estuprada, estrangulada, rosto desfigurado com ácido, queixo quebrado por socos, dentadas por todo o corpo, carbonizada. Inicia-se um dos capítulos mais indignos de nossa história em termos de justiça. Seu cadáver andou até em geladeira de bar e muita gente viu tudo acontecer e nada fez, pois os autores eram “intocáveis”. O porteiro do prédio onde o crime ocorreu e outros foram assassinados. E quem defendeu esses bandidos, 45 anos depois ainda impunes, não foi nenhum militante dos direitos humanos, não é mesmo? Ao contrário. E Aracelli hoje dá nome à rua onde morava, num bairro pobre de Serra/ES, onde a placa da prefeitura mostra apenas um “L” no nome. E o catálogo dos Correios leva à Rua “Aracele”. Até a grafia do nome é desprezada. E importante avenida à beira-mar, na capital, tem o mesmo nome de um dos supostos assassinos. Ou seja, impunidade não é novo, neste país. Nem o seu escárnio.

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