Crueldade multiplicada

Crueldade multiplicada

Oscar Bessi

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Em 1908, os irmãos Jean e Amédée Bouyssonie, dois padres, descobriram os restos mortais de um neandertal com cerca de 50 mil anos, na França, em uma cova ao lado de suas ferramentas. Desde então, foram várias as descobertas sobre rituais de despedidas dos seres humanos e seus ancestrais através dos tempos. Alguns mais complexos, outros mais singelos. Mas todos solenes. Permeados de emoção, homenagem e fé. Assim, como faz parte da nossa espécie não conseguir lidar direito com a compreensão da finitude e o temor da morte, é humano se despedir dos nossos entes queridos num momento especial. E o que esses criminosos, que escolhem locais para esconder os corpos das vítimas de sua crueldade, criando cemitérios como o descoberto pela Polícia esta semana em Porto Alegre, é multiplicar o castigo imposto pela sua barbárie. Não basta perder um familiar para o crime. Perde-se também o direito de uma despedida decente.

Não é novidade. Cemitérios clandestinos proliferam por todos os estados do Brasil e nos países onde a criminalidade faz parte do cotidiano atormentado pelo medo. Subjugados em sua maioria por organizações criminosas sustentadas, talvez inconscientemente, por boa parte do próprio povo que padece. Em 2019, um cemitério clandestino usado por criminosos em terreno no Alto Petrópolis, na Capital, tinha vários corpos. Ali funcionava uma espécie de tribunal do crime há pelo menos cinco anos antes da descoberta do local macabro. E nesses tribunais do crime, creio que o leitor sabe, não há impunidade e muito menos ampla defesa e contraditório. Há só a execução. Sumária. Impiedosa. Sem qualquer cartilha de direitos humanos para ser lembrada no ato. A sentença é dada e executada e quem não gostou, morre da mesma maneira. Em 2021, os policiais descobriram mais um cemitério clandestino em Porto Alegre, desta vez na Lomba do Pinheiro, na zona Leste.

O desta semana foi descoberto graças a incansáveis investigações de policiais civis na tentativa de descobrir o paradeiro de Bruno Paim. Um jovem deficiente que vencia, com muito esforço e dedicação, os grandes desafios impostos pela vida, e trabalhava em um supermercado. É dolorido demais tentar entender o absurdo de quem consegue tantas superações, por seu próprio mérito e esforço, e acaba sucumbindo à estupidez e à violência. Ao sair do trabalho, Bruno foi arrancado por bandidos de dentro do ônibus em que viajava e não foi mais visto. A Polícia encontrou o seu corpo nesse cemitério clandestino, junto com outros dois corpos deixados no lugar pelos traficantes. A dor da família, dos colegas de trabalho que tanto se afeiçoaram a Bruno, é gigante. Mas graças ao trabalho dos policiais, talvez ainda se consiga fazer uma despedida. Tardia, não como ele merecia, mas pelo menos digna. Enquanto isso, vamos seguir sonhando com o dia em que a consciência dessa dor sentida atinja o máximo de corações possíveis e então se pare, finalmente, de financiar esses traficantes sanguinários.

 


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