Esses anjos e a nossa loucura

Esses anjos e a nossa loucura

Tudo bizarro demais. O que passa pela cabeça desses adultos incapazes de ter ao menos piedade por uma criança, já que pedir amor, ternura ou um mínimo respeito à vida parece demais? Ei! Não estávamos evoluindo, humanidade?

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“Quando as crianças brincam/ E eu as oiço brincar,/ Qualquer coisa em minha alma/ Começa a se alegrar.”. Assim começa o poema “Quando as crianças brincam”, de Fernando Pessoa, publicado em 1942. É um poema curto, onde ele confessa o contraste, em seu íntimo, pelo encantamento com os pequenos e a infância nada feliz que teve. Mas o principal recado de um dos maiores poetas da língua portuguesa é o sorriso conselheiro que deixa em seus versos finais: “Se quem fui é enigma,/ E quem serei visão,/ Quem sou ao menos sinta/ Isto no coração.”. Ou seja. Tua vida pode ser caótica, meu caro. Mas ao menos saiba amar as crianças. Tudo, no mundo delas, tem alma e é bom. As crianças são a nossa forma mais perfeita e pura, o amor em essência, a chance de ainda ser do bem e se fazer coisas boas. Não há nada mais encantador e belo que as brincadeiras e fantasias da inocência. Do despertar da vida. Nossa legislação deveria ser muito mais atenta às crianças. Não apenas para garantir direitos práticos. Mas para salvaguardar seu direito sagrado de sorrir e sonhar em paz.

Zapeio notícias. Encontro um crime passional. Ex-marido, possessivo, ciumento, preso nas amarras culturais onde mulher é objeto de sua propriedade – mentira que a “educação” dos seus diplomas não desfez –, mata a ex-esposa na frente de duas filhas pequenas. Muito pequenas. E mata o namorado. Na frente dos filhos dele. Crianças. Eu não discuto a passionalidade das paixões, é do ser humano essa loucura. Não foi o primeiro. Não será o último. Todos os dias se perdem vidas por ciúme - quase sempre mulheres. Eu penso é no olhar dessas crianças vendo a loucura vitimar quem amam. Eu penso no amanhã delas. Tento mudar de notícia e dou de cara com o vídeo de um bebê que, sem qualquer cuidado ou atenção de um adulto, engatinha e atravessa sozinho (sozinho!) uma rua. E um motorista que vem na via, sem outro movimento, não vê o pequeno (por quê?) e o atropela. Passa por cima. E foge sem prestar socorro. Era um bebê! Que crueldade, que desprezo pela vida! Outro homem, com uma criança no colo, molesta uma menina, irmã da que segura em seus braços, num estádio de futebol. Tudo bizarro demais. O que passa pela cabeça desses adultos incapazes de ter ao menos piedade por uma criança, já que pedir amor, ternura ou um mínimo respeito à vida parece demais? Ei! Não estávamos evoluindo, humanidade?

Creio que muitos, feito eu, se revoltam com esse tipo de situação. De crianças que são vítimas de violências diversas. De secretarias de saúde municipais e estaduais descaradamente se empurrando nas responsabilidades por não internarem um bebê, que morre à espera do leito de UTI, apesar das ordens judiciais solenemente ignoradas. Com toda essa máquina pública, e esses cargos, pagos pelo suor do povo, para em prol dele trabalharem. Ao contrário. Empinam o nariz, dão as costas e depois tentam emoldurar desculpas esfarrapadas na imprensa. Pobre anjos nossos, à mercê da loucura de tanta gente insensível. Quem um dia também foram crianças. E seguindo a necessária onda de poesia nesta página policial, encerro com versos da brasileira Ruth Rocha, que resumem tudo: “Toda criança no mundo/ Deve ser bem protegida/ Contra os rigores do tempo/ Contra os rigores da vida”.


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