O Rio Grande estarrecido

O Rio Grande estarrecido

Oscar Bessi

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As histórias são contadas entre lágrimas. Momentos de horror, tensão, medo. Horas em árvores, telhados de casas, ou onde fosse possível ficar, na esperança de escapar da fúria das águas e ser resgatado. Idosos com dificuldade de locomoção, famílias inteiras com bebês. Desespero. Nem todos conseguiram. O Rio Grande do Sul chora ao menos 41 mortos numa semana de luto e tristeza. Há quem ainda procure, em desespero, algum sinal de familiares desaparecidos. Entre os escombros de cidades destruídas. É como se tivessem sido bombardeadas numa dessas guerras absurdas que acompanhamos nos noticiários. Mas esta guerra, aqui e agora, é da natureza. Ela que se arma e, volta e meia, cada vez mais frequente e cada vez mais forte, deixa claro que nada do que fizemos até hoje ficará sem resposta. O desequilíbrio climático global está aí. Tão presente e forte quanto os desmatamentos, as ações irresponsáveis, as construções em áreas de risco e todo esse contexto de ganância e insensatez que o gera. A maior catástrofe natural do nosso estado, infelizmente, não será a última. Outras virão. Talvez ainda piores.  

 
Mas os gaúchos são valentes. E solidários. A Defesa Civil, cada vez mais, dá uma aula de mobilização, agilidade e entrega de seus componentes. No resgate, no socorro ou no suporte às famílias que perderam tudo, às cidades devastadas, lá está o exército de colete laranja, incansável, diuturnamente sendo ação e alívio. Forças de segurança, agentes públicos, voluntários vindos de todos os lados. Cidades praticamente inteiras precisam ser reconstruídas. A verdadeira demonstração da garra e da humanidade de nossa gente. Somos fantásticos quando decidimos ser. E há que se enaltecer as ações solidárias, deflagradas imediatamente pelos gaúchos por todos os lados, em prol dessas vítimas. Tem gente que ficou dias inteiros sem conseguir beber um copo de água, sem conseguir se comunicar nem para pedir socorro. São pontos de coleta de doações como os órgãos do Estado, que já estavam engajados na campanha do agasalho, mutirões de igrejas como a ação gigante da Universal e iniciativas diversas, como o Rock Solidário deste sábado, em Brochier, a iniciativa de piquetes farroupilhas e da organização da Festa do Moranguinho. Nossa gente, em sua maioria, não se abandona.


Dias de más notícias estarrecedoras, para os gaúchos. Esta tragédia, de tantas vidas perdidas, ocorre na mesma semana em que assistimos o Supremo Tribunal de Justiça bater o martelo, anulando todo o julgamento da Boate Kiss. Todas aquelas mortes absurdas de jovens, toda a dor, todas as lições que deveríamos ter tirado do que aconteceu (e parecem já diluídas no descaso e na irresponsabilidade de uns e outros), parecem menos importantes do que uma formalidade burocrática, ou ritualística, qualquer. Talvez alguns papéis valham, em certos momentos, mais do que vidas humanas. Mas é o nosso velho emaranhado de saídas e volteios legais em prol da impunidade, que deixe de pagar sua conta de água ou luz, caro trabalhador, e veja se haverá recursos de defesa ou sensibilidade antes de cortarem tudo. “Viva o povo brasileiro”, disse Ubaldo, em sua obra clássica sobre a violência física e simbólica com que convivemos em nossos abismos sociais, permeados de privilégios, autoritarismo e distância de um povo que banca tudo com seu suor. Enfim. Fiquemos aqui, com a solidariedade dos comuns.


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