Pescadores de almas perdidas

Pescadores de almas perdidas

Oscar Bessi

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As cenas, por si, já são aterradoras. Os efeitos trágicos das cheias no Estado, ao longo do ano, já garantem por si só doses elevadas de comoção e espanto. Os gestos de solidariedade e atos de coragem extrema dos diversos heróis anônimos se multiplicam. Pescadores sem muitos recursos financeiros pegam seus barcos e remam, dias e noites, no auxílio a quem nem conhecem. Bombeiros, policiais, equipes da área da Saúde e integrantes da Defesa Civil, municipal ou estadual, deixam as próprias famílias de lado, esquecem carga horária de trabalho e se entregam de corpo e alma ao socorro, ao apoio, à ajuda que parece nunca ser suficiente. Pois é uma tragédia atrás da outra. É vítima que não acaba mais. Quando o sol retorna, por períodos que logo se acabam, as ruas dos lugares atingidos lembram cenários de guerra. Há ajuda. E há esperança sim. Há o esforço de muitos para que, de uma forma ou de outra, tudo o que está acontecendo conosco este ano seja minimizado. Mas a dor que permeia olhares e gestos fatigados é quase palpável no ar. É uma dor que caminha entre calçadas quebradas, casas destruídas e caminhos desmoronados. Uma dor cansada de doer.

E o que mais inquieta, em meio a todas essas tragédias que se repetem de quando em quando, muitas vezes mal dando tempo para se recuperar da mazela anterior, é um desespero que não tem nada a ver com o tempo, as águas ou o clima. Um desespero que não é o medo do El Niño, da chuva que veio e virá outra vez, das enxurradas, das revoltas que a mãe natureza anda decidindo não mais segurar. É um desespero de não perder o pouco que se tem. Não para as águas. Nem para os raios, vendavais ou pedras de granizo. Mas para o próprio homem. Um jornalista, de barco, dia desses decide ir onde poucas conseguem chegar. Onde não se crê que ainda haja alguém. E lá ele descobre uma família inteira, mais de uma dúzia de pessoas, praticamente empoleiradas numa nesga de lugar seco no alto de um casebre. “Só ficamos nós, temos muito pouco, não dá para sair e deixar alguém levar tudo o que temos”, diz um homem. E, por todos os lugares, a Defesa Civil relata: "Não são poucos, infelizmente, é um número elevado de pessoas que são avisadas sobre a área de risco, sobre tudo que pode acontecer, mas não saem, e não saem porque não querem que outros venham roubar o que é deles."

É o cúmulo pensar que em todos os lugares, sem exceção, as pessoas temam mais perder suas coisas para um semelhante do que arriscar a vida numa tragédia natural. É bizarro saber que há aqueles que aproveitam toda e qualquer tragédia humana para ganhar, ainda que ganhar quase nada e sabendo que tirará do outro suas últimas migalhas. E a tal civilização, que deveria ter nos tornado mais evoluídos e, por consequência, mais fraternos, solidários, pacíficos e menos bárbaros? Papo furado. Seguimos nos matando por frivolidades. Seguimos destruindo. O povo segue agindo contra si. E então alguém dirá que somos um animal horrível, o pior do planeta. Não. Também sabemos ser belíssimos. Como os tantos que citei, lá no início, gente que se solidariza e não mede esforços para ajudar que nem conhece. Somos assim. Humanos. Pescadores de almas perdidas, ansiosos apenas por um barco que nos leve pelo melhor caminho.


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