É necessário preservar o avesso

É necessário preservar o avesso

Letícia Pasuch

Espetáculo "O Avesso da Pele" lotou o Salão de Atos da PUCRS nesta quarta, quinta e sexta-feira

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“É necessário preservar o avesso”, você me disse. “Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina o nosso modo de estar no mundo. E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes de modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso, entende? Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos. E são esses afetos que nos mantêm vivos.”

Se o romance “O Avesso da Pele”, de Jeferson Tenório, já tinha sua legitimidade consolidada no meio literário, “O Avesso da Pele” espetáculo reforça de forma contundente o prestígio pela história contada. A peça teve sessões lotadas na última quarta, quinta e sexta-feira, no Salão de Atos da PUCRS, na 30° POA em Cena. Após sua circulação em São Paulo e no Rio de Janeiro, a montagem idealizada pelo Coletivo Ocutá chega ao Estado que Tenório já morou. Para quem já tinha lido o livro, a expectativa para a peça podia ser até maior. E elas foram superadas.

A história é contada por Pedro, que, após a brutal morte de seu pai, Henrique, em abordagem policial, embarca em uma jornada de resgate das memórias familiares e entrelaça com a paternidade e o autoconhecimento, com uma narrativa que provoca reflexões sobre identidade, violência, racismo e a complexidade das relações raciais.

O ponto de partida da montagem se dá com quatro homens negros surgindo em meio a uma pilha de livros no chão, sob luzes azuis. Os quatro – interpretados por Alexandre Ammano, Bruno Rocha, Marcos Oli e Vitor Britto – intercalam todos os personagens em cena, principalmente Pedro e Henrique. A narrativa, calcada na alternância do tempo, e a maioria das palavras escritas por Tenório são preservadas no espetáculo. A diferença está, além da interferência na música – com a inserção do funk, nas coreografias executadas e no incansável jogo de corpo, em cenas carregadas de metáforas.

Além do drama e da melancolia, o espetáculo por vezes quebra com pontos altos de humor e sarcasmo, como a cena que Henrique e Marta estão na sessão de psicanálise, e também nos momentos de sala de aula. O texto do espetáculo ainda trouxe adaptações regionais, com menções aos bairros de Porto Alegre e cidades da região metropolitana e gírias gaúchas, intensificando a proximidade com a plateia. Em vários momentos, o público fez parte da encenação, e o teatro foi transformado em uma grande sala de aula. A aula era de “Crime e Castigo”, obra de Dostoievski que é entrelaçada na trama.

Assim como no livro, a montagem reforça como os temas tratados seguem atuais e devem ser vistos, refletidos e difundidos. O impacto causado em quem pôde ter contato com a narrativa de Tenório e com o trabalho do coletivo Ocutá reverbera por muito tempo, de forma arrebatadora.

*Supervisão de Luiz Gonzaga Lopes


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895