A alma de Porto Alegre

A alma de Porto Alegre

Por Rafael Guimaraens*

Caderno de Sábado

‘O Brasil prestava atenção em Porto Alegre e a grandiosa exposição do Centenário Farroupilha buscou articular um passado idealizado com um futuro pretendido’

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Datas redondas servem para isso. Para celebrações e – por que não – para reflexões que tendem a se tornar nostálgicas em demasia, dependendo do entendimento quanto ao ponto em que nos encontramos. Podemos partir de um consenso: Porto Alegre é uma cidade boa de se viver, mas já foi melhor – ou alguém discorda? 250 anos talvez não seja muito, nem pouco, mas as experiências coletivas vividas neste quarto de milênio deixam rastros que permitem formular algumas inquietações. Por exemplo, o que impediu e ainda impede Porto Alegre de se tornar a metrópole cosmopolita que sempre pretendeu ser? Por que não conseguiu manter-se como uma cidade relevante no país, conhecida no mundo, desenvolvida do ponto de vista econômico, cultural, ambiental e humano, conectada com o que há de mais moderno sem perder as características que a tornam peculiar?

Nos primeiros anos do século 20, Porto Alegre experimentou mudanças extraordinárias. Em curtíssimo espaço de tempo, a cidade incorporou os principais avanços tecnológicos: o bonde elétrico, os primeiros automóveis, o cinematógrafo, o gramofone. Os simplórios sobrados portugueses foram rapidamente atropelados pela majestosa arquitetura alemã. As indústrias multiplicaram-se pelos bairros da Zona Norte, produzindo quase tudo que a cidade precisava: móveis, vestuário, cobertores, panelas, cervejas e chocolates. O que faltava, era trazido por um vigoroso comércio de importação. Cafés e lojas chiques davam ao centro uma atmosfera europeia. Uma brilhante geração de escritores, abastecida pela Livraria Americana, sob os auspícios do positivismo modernizador, desfilava seu talento pela Rua da Praia como se estivesse em Champs Elyseés.

A Belle Epòque porto-alegrense enunciava uma vocação para o contemporâneo, que alcançaria seu auge a partir da revolução de 1930. A euforia pela vitória de Getúlio Vargas impulsionou uma vigorosa mobilização social que espraiou-se por todos os aspectos da vida urbana, avalizada pela impressionante trajetória da Livraria do Globo, que trouxe o mundo para a cidade e tornou-se a maior editora do país, suplantando as gigantes estabelecidas do eixo- Rio-São Paulo. O Brasil prestava atenção em Porto Alegre e a grandiosa exposição do Centenário Farroupilha buscou articular um passado idealizado com um futuro pretendido.

Esse processo seria bruscamente interrompido por dois fatores extemporâneos: a guerra, que afetou os negócios do Estado, já que envolveu dois de seus principais mercados, a Alemanha e a Inglaterra, e a enchente de 1941, que destroçou a economia da capital, a qual levaria um bom tempo para se recuperar. Assim, o colorido dos anos 1930, mesmo que às vezes exagerados, empalideceu nas décadas seguintes.

A natureza foi generosa e os feitos sociais ao longo de sua história não são nada desprezíveis. Vejamos o século 20. Porto Alegre revelou-se como cidade solidária nas envolventes campanhas de auxílio às 70 mil pessoas flageladas pela enchente de 41. Consagrou-se como cidade politizada quando o povo se concentrou diante do Palácio Piratini em apoio à Campanha da Legalidade de 1961. Destacou-se como cidade ambientalista a partir das pioneiras lutas ecológicas da década de 1970. Por fim, na década de 1990, obteve o reconhecimento internacional como cidade democrática com a implantação de práticas originais de participação popular, que produziram resultados expressivos na qualidade de vida de seus moradores, comprovados pela elevação dos Índices de Desenvolvimento Humano. 

Porto Alegre dialogava com o mundo, tornara-se relevante, sede do Fórum Social Mundial, por estabelecer padrões qualificados e produtivos de relação entre governo e comunidade. Neste período, adotou políticas culturais criativas de apoio aos artistas e de visibilidade das comunidades. E ensaiou avanços tecnológicos como a implantação do Ceitec, concebido para ser o maior produtor de semicondutores da América Latina. 

O que foi feito deveras? Uma cidade solidária, politizada, preservacionista, participativa, com ênfase na Cultura e na qualidade de vida pode ser muito boa para a população que nela vive, mas não ajuda nos “grandes negócios”, o binômio privatizações-incorporações imobiliárias. Para ele funcionar, é mais conveniente uma cidadania apática, individualista, desinteressada e indiferente ao que acontece a sua volta. E esta vem sendo a rotina de Porto Alegre: serviços públicos precarizados e fileiras impressionantes torres para público de alto poder aquisitivo, assediando espaços públicos, terrestres ou aéreos, e construindo muros. Na grandiosidade das torres, a cidade apequenou-se.

Antes de projetar o seu futuro, talvez Porto Alegre precise reencontrar a sua alma e ela não está nas promessas impressas nos folders das grandes incorporadoras, nem nos leilões de venda das empresas públicas. Está, sim, onde a vida real acontece. Na Restinga, na Lomba, na Bonja, no Rubem Berta, no Bonfim, na Cidade Baixa, no Brooklyn. A alma da cidade está nos poetas, seresteiros, namorados, nos artistas que perderam o apoio, mas não o talento e a dignidade. Está nos inconformados e nos que se importam. Na riqueza de sua diversidade. Está viva no Slam das Minas, na bancada negra, nas livrarias, nas editoras, nos que nadam contra a maré, nos que resistem. Está em qualquer lugar onde alguém esteja ensinando, cuidando, escrevendo, desenhando, pintando, tocando, dançando, trabalhando duro, formulando ou protestando, fazendo planos ou fazendo amor. Haverá de estar de volta ao cais, fechado por cadeados privatistas, com seus armazéns corroídos pela ferrugem e pelo descaso, o cais que, algum dia, alguém com poder e decência haverá de devolver à cidade.

É confortante pensar que Porto Alegre tem um encontro marcado com suas vocações. Depende dos porto-alegrenses definir quando ele ocorrerá.

*: Jornalista e escritor

 


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895