A cena da Cultura também se faz com números

A cena da Cultura também se faz com números

Consuelo Vallandro *

Pesquisador Leandro Valiati apresenta números do PIB da Ecic no Itaú Cultural, em São Paulo

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Hoje uma parte do setor cultural do Estado se vê revoltada por conta dos resultados das priorizações da Lei de Incentivo à Cultura do RS, as quais são determinadas por meio das avaliações do Conselho Estadual de Cultura (CEC-RS), mas parece que poucos têm a dimensão do pano de fundo desta cena. Rascunho aqui a voz em off de um narrador imaginário: quando assumi o cargo de presidente do CEC, há 8 meses, o mundo se reerguia após uma pandemia, mas nós brasileiros seguíamos na reta final do pandemônio nacional, e o quadro geral do segmento da cultura era – e ainda é, para alguns – um misto de terra arrasada ao estilo pós-guerra com um verdejante esperançar que se materializava com a campanha da eleição de um governo federal que recolocaria a cultura em um patamar de dignidade e respeito. Aqui no Estado, como no Brasil, no segundo semestre de 2022 brotou uma primavera de eventos culturais depois que a população finalmente sentiu-se feliz e segura para voltar às grandes aglomerações.

Esta resistência e desejo de festejar incubados durante mais de um ano de isolamento foram também alimentados pelo fato de que a Lei Aldir Blanc foi concebida, flor de lótus nascida durante a pandemia, em meio ao caos econômico, à precariedade de vida dos trabalhadores da cultura e após o maldoso veto presidencial ao auxílio emergencial, entre outras categorias, para os artistas e técnicos de espetáculos. E foi graças também a este investimento, que concedia 3 bilhões de reais em aportes diretos aos trabalhadores da cultura de maneira desburocratizada e capilarizada por meio das gestões estaduais e municipais em 2020, que, em plena pandemia, a economia da cultura e das indústrias criativas (ECIC) do Brasil movimentou R$ 230,14 bilhões – o equivalente a 3,11% do Produto Interno Bruto (PIB) do nosso país, como foi apontado recentemente pelo Observatório Itaú Cultural. Aqui cabe lembrar que o motor mais volumoso de fomento à cultura como setor econômico no país até a Aldir Blanc ser executada sempre foi a Lei de Incentivo à Cultura, que prevê o incentivo ao patrocínio cultural por meio de desconto no Imposto de Renda. 

Sancionada em nível federal em 1991, ganhou a alcunha em homenagem ao secretário de cultura da época, Sérgio Paulo Rouanet – sobrenome que hoje infelizmente virou sinônimo de xingamento para muitos. Aqui no RS, uma lei semelhante também é a protagonista dos fomentos à Cultura, contrariando a determinação do nosso Plano Estadual de Cultura; denominada apenas LIC, esta Lei oferece em troca de patrocínio um mecanismo de desconto no ICMS das empresas. Justamente aí observamos o maior problema das Leis de Incentivo: a escolha de quem deve receber a verba, ou seja, a “curadoria” do patrocínio, é determinada em geral por um departamento de marketing que escolhe qual atração cultural trará resultado mais lucrativo em termos de público-alvo e imagem midiática para a marca do patrocinador.

Esse fato obviamente cria um sistema excludente de “seleção natural” dos projetos culturais. Por este motivo, constatando que havia um número ínfimo de peças de teatro, espetáculos de dança, circo, feiras de artesanato, eventos de culturas populares e afins financiados pela LIC, há duas décadas o setor cultural reivindicou um fundo direto para o Estado e, depois de algumas gestões e muitas lutas encabeçadas por entidades como o Sated-RS, entrou em cena o FAC - Fundo de Apoio à Cultura ao final do governo Yeda, em 2009. A referência proposta pelos artistas era o bem-sucedido Fundo de Cultura pernambucano, mas infelizmente houve mudanças no texto original por imposições partidárias. Mesmo assim, no RS a maior demanda de inscritos para a LIC permaneceram as feiras e eventos de grandes produtoras, enquanto o FAC passou a ser buscado para apoiar o trabalho de fazedores de cultura de menor porte. 

Mais adiante, em 2012, o Estado, já nas mãos de Tarso Genro, criou o fundo do Esporte e da Assistência Social. Para igualar o orçamento dos fundos, a LIC deveria baixar seu teto; foi então que a cúpula da Sedac, a secretaria de cultura estadual, decidiu reivindicar que esse percentual retirado da LIC fosse investido no FAC - foi uma forma de o Estado assumir sua responsabilidade com as políticas públicas para o setor cultural, oferecendo aporte direto aos produtores culturais. A partir de então, o orçamento do FAC passou dos parcos 800 mil inicialmente previsto na Lei para valores que chegaram à casa dos milhões, alimentados por um percentual proveniente dos patrocinadores da LIC.

Em comparação ao governo de Sartori, findo em 2018, a gestão do governo Leite conseguiu em quatro anos um aumento de 35 para 70 milhões no valor anual liberado para a LIC e quase triplicou o valor do FAC, reestabelecendo a importância que o Fundo tinha e perdera após a saída de Tarso, mas estes números infelizmente já não são suficientes para dar conta da cena atual. Nesta trama, atuam fatores como o retesamento quase total por parte do governo anterior da Lei Rouanet, que encaminhou seus órfãos à LIC, e o aumento exponencial do número de produtores culturais antes marginalizados que despertaram para o fomento estatal à cultura após serem contemplados por editais emergenciais durante a pandemia. Acentua-se a situação pela ausência de editais do FAC para a maioria dos segmentos desde o ano de 2021, quando houve uma grande leva de editais, os quais, mesmo com número recordista de valor ofertado por segmento, não deram conta em média nem de 15% da demanda de inscritos. 

Por fim, em 2023 a Sedac anunciou que o valor total do Fundo, de 30 milhões, será utilizado em uma chamada pública de coparticipação para prefeituras realizarem eventos populares tradicionais, o que acaba por deixar muitos trabalhadores da cultura à míngua e os leva a buscar a LIC como tábua da salvação.

Pausa para contextualizar em números e deixar mais claro o drama desta cena: o CEC-RS avaliou, na linha de financiamento “Artes e Economia Criativa”, de janeiro a abril de 2023, 385 projetos que, somados, demandavam mais de R$ 107 milhões, enquanto os recursos autorizados pela Secretaria de Estado da Cultura para este período eram de pouco mais de R$ 20 milhões (e o total liberado pelo orçamento para o ano inteiro é de 70 milhões). Fica evidente, portanto, a insuficiência dos recursos disponibilizados pelo Executivo para o FAC e para a própria LIC - esta diante de uma demanda que passou uma década (2011-2020) com uma média de 405 propostas concorrendo, subindo para 659 em 2021 e chegando em 2022 a um recorde absoluto de 1145 projetos inscritos.
Ainda há espaço para um deus ex machina que gera maior imbróglio junto aos concorrentes da LIC: a seleção sempre funcionou de modo permanente. Porém, a implantação de uma tabela numérica fixa de avaliação pela gestão anterior do CEC durante um período de ausência dos conselheiros eleitos pelas entidades culturais em 2022 trouxe a possibilidade de o proponente, ao reinscrever seu projeto, aprimorar sistematicamente sua nota. 

O resultado que se revela desde o final de 2022 é um acúmulo crescente de projetos que empatam com a nota máxima (só no último mês, foram mais de 30), o que também desencadeia muita frustração para aqueles que não são priorizados. Em meio a isso, como primeiro critério de desempate, a maioria dos conselheiros estaduais em 2023 optou por priorizar aqueles projetos que tenham como local de realização os municípios menos contemplados pela LIC nos últimos 12 meses, buscando atender cidades menores, contemplando a demanda de pulverização das verbas estaduais prevista no Plano Estadual de Cultura. Assim finalmente chegamos à cena atual: eventos de renome e tradição de cidades que costumam ver muitos de seus projetos aprovados não foram priorizados.
Por óbvio não cabe ao CEC-RS responder por essa verdadeira primavera das Artes, e infelizmente parece que perdemos o direito de celebrar suas flores. Do meu ponto de vista, posso afirmar que, como conselheiros, estamos cientes e ciosos de nossa responsabilidade para com a cadeia produtiva da cultura e todos que nela atuam, bem como da importância dos recursos incentivados para sua manutenção. Seguimos buscando alternativas para cumprir com a tarefa, nem sempre fácil ou agradável, de eleger, de uma forma mais justa possível, os projetos prioritários, dentre tantos da maior relevância que se apresentam a cada dia, com os recursos limitados de que dispõe. Nesse momento da trama, mesmo ainda enredado nos prazos mais curtos estabelecidos pela nova Instrução Normativa da Sedac, afirmo que o CEC-RS de hoje compromete-se a ser brechtiano, procurando elucidar este plano socioeconômico que nos circunda e dialogando, de forma franca e democrática, com todos os segmentos culturais e regiões funcionais do Estado, posto que é de interesse público assistirmos todos a um final feliz para esta trama. Cabe agora aos trabalhadores da cultura garantir que esta primavera não pereça e solicitar ao governo que assuma seu papel de protagonista nesta obra ao fomentar com valores maiores o setor cultural.


* Presidente do Conselho Estadual de Cultura - CEC/RS


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895