A Cultura dos Gibis

A Cultura dos Gibis

Guilherme Smee *

Gibiteca da Biblioteca Pública do Estado sedia a 2ª edição da Feira Gibizeira neste sábado e domingo

publicidade

Existem diversas definições de cultura. Uma delas é a do semioticista da cultura russo Iuri Lotman que atesta que cultura é memória e que memória, por sua vez, é cultura. Assim como a memória, a cultura é feita de pequenos fragmentos desordenados, que colocados em uma ordem deliberada, fazem sentido como um todo e orientam um comportamento. Essa é uma semelhança que também se guarda para a leitura das histórias em quadrinhos, que são quadros colocados em sequência com a função de dar narratividade a tais imagens. A narratividade também existe na memória e na cultura, sejam elas em âmbito individual ou coletivo.

Dessa forma, uma cultura dos gibis seriam as histórias que podemos contar sobre nós mesmos ou sobre nossa coletividade a partir da experiência de um objeto como as revistas em quadrinhos, apelidadas carinhosamente no Brasil como Gibis. O nome Gibi vem da revista publicada pela Rio Gráfica e Editora (RGE), de Roberto Marinho, que trazia como mascote da edição um garotinho negro, que naquela época eram apelidados de gibi. A primeira edição de Gibi data de 1939, mas muito antes o público brasileiro já estava acostumado a ler quadrinhos em suplementos jornalísticos e revistas humorísticas.

Uma das histórias mais contadas sobre a cultura dos gibis, pelos brasileiros que nasceram após a década de 1970 é que as revistas em quadrinhos da Turma da Mônica, de Mauricio de Sousa foram suas companheiras durante a infância, ou mais ainda, ajudaram no seu crescimento como leitores e escritores, auxiliando em sua alfabetização. Gerações anteriores tiveram como companheiras os quadrinhos Disney, que fixaram a Editora Abril como uma potência dos quadrinhos por mais de cinco décadas. Pessoas ainda mais velhas lembram com carinho os momentos na fila das matinês de cinema em que trocavam com os amigos gibis de bangue-bangue. As gerações mais novas, por sua vez, têm nos mangás, os quadrinhos japoneses, a porta de entrada para a cultura dos gibis.

Entretanto, a cultura dos gibis não se resume à mera fisicalidade de uma revista em quadrinhos. Embora muitos dos resistentes fãs de quadrinhos preservem com afinco uma coleção de obras que cada vez aumenta mais, essa cultura se espalha por meio dos seus personagens marcantes, que vêm de diversos países. Quem nunca quis se tornar um super-herói? Os personagens de quadrinhos provocam uma identificação projetiva nas pessoas e ajudam a formar seu caráter e comportamento, através de figuras cujo desempenho é passível de aceitação social e, daí, de imitação.

Mafalda, Armandinho, Calvin e Haroldo, Hagar, todos eles já apareceram nas provas de vestibulares em diversas universidades ao redor do país, exigindo do candidato a uma vaga uma interpretação de texto. Mas não apenas de texto, os quadrinhos também promovem uma alfabetização visual, em que o leitor aprende também a decodificar as imagens. Uma propriedade importante de se levar consigo na era das plataformas digitais, em que as imagens e os textos são cada vez mais manipulados. Nossos queridos personagens de quadrinhos também, muitas vezes, são apropriados por motivos espúrios, ideológicos e políticos, para atingir os objetivos de quem os subverte.

Contudo, essa é, para o bem ou para o mal, uma das magias da cultura dos gibis. Os personagens, por mais que tenham uma propriedade intelectual, não são de uma empresa, são de todos que deles usufruem. Cada um tem a sua versão do seu personagem favorito, e mesmo essa versão favorita, vai mudar nos nossos corações e mentes ao longo dos tempos. Como a memória e a cultura, essas noções de quem são esses personagens vão mudando a partir de fragmentos, a cada adaptação deles para outras mídias: séries, cinema, teatro, literatura, brinquedos, merchandising. Todos nós nos apropriamos dos personagens de gibis de certa forma, seja numa festa à fantasia, seja numa performance de cosplay, seja no desenho que rabiscamos à esmo ou quando damos nossa impressão de gosto a respeito de um livro ou um filme com estes personagens. 

Por isso, mais uma vez, é fortuita a comparação de Iuri Lotman entre cultura e memória. Poderíamos pensar que memória é o que nos faz e a cultura é o que fazemos, mas estas definições irão acabar encontrando convergências. Porque a cultura dos gibis também é produzir histórias em quadrinhos, de forma amadora ou profissional. Enquanto produzimos algo também estamos produzindo a nós mesmos, principalmente enquanto somos artesãos de uma narrativa ou de uma forma de arte, produzimos memória individual e coletiva e também cultura, ao mesmo tempo que nos aproveitamos delas para esta produção.

A produção de quadrinhos brasileira é bastante diversa e, diferente das revistas em quadrinhos de outros países como os Estados Unidos (comics), Japão (mangás), Itália (fumetti), quadrinhos não uma palavra sinônimo de um estilo de desenho ou narrativa, mas do sistema que encadeia essa narrativa, assim como na França e em Portugal. Nosso país já teve uma produção prolífica de quadrinhos de humor, infantis, de horror, eróticos, de tirinhas, undergrounds, de quadrinhos divulgados exclusivamente nas redes sociais, provando a versatilidade daquilo que é feito em solo brasileiro. Também atesta a capacidade da cultura brasileira do gibi em fazer uma antropofagia de tudo que vem de fora e desenvolver seu próprio toque. 
O Brasil também é o país que realiza o maior festival de cultura pop do mundo, a Comic Con Experience, que ocorre todo final de ano em São Paulo, com visitação total de quase trezentas mil pessoas. No coração deste evento, o Artists’ Alley, a vitrine daquilo que é produzido de melhor do quadrinho brasileiro. Na última edição presencial, em 2019, o Alley contava com mais de 500 artistas expositores de todas as partes da nação. Eventos de quadrinhos mobilizam muitas pessoas, que amam aquela que é considerada a nona arte, e que se veem pertencentes a esta cultura dos gibis. Assim, podemos sentir que esse tipo de memória, que guarda muito de afetivo, acaba extrapolando os limites de uma singela revistinha em quadrinhos e se torna algo muito maior: uma verdadeira cultura dos gibis. 

Para os gaúchos, o mais recente evento de quadrinhos a surgir foi a Feira Gibizeira, realizada pela Biblioteca Pública do Estado, órgão da Secretaria de Cultura do Rio Grande do Sul. A primeira edição foi em maio de 2022, revelando a diversidade da produção gaúcha de quadrinhos. Agora, neste final de semana de 24 e 25 de setembro, das 13h às 19h, a Biblioteca Pública do Estado (Riachuelo, 1190, Centro Histórico, Porto Alegre/RS) sediará a segunda edição da Feira Gibizeira, trazendo bate-papos, oficinas, exposições e, claro, a feira com mais de 40 artistas de diversas partes do estado e do país. O evento tem entrada franca e tem como objetivo celebrar a cultura dos gibis, tão presente na vida de tantas pessoas e no coração daqueles que cresceram com este tipo de leitura. 

* Curador da Gibiteca da Biblioteca Pública do Estado. Pesquisador de quadrinhos. Doutor em Ciências da Comunicação. Quadrinista e designer

 

Segunda Feira Gibizeira neste sábado e domingo

Para os gaúchos, o mais recente evento de quadrinhos a surgir foi a Feira Gibizeira, realizada pela Biblioteca Pública do Estado, órgão da Secretaria de Cultura do Rio Grande do Sul. A primeira edição foi em maio de 2022, revelando a diversidade da produção gaúcha de quadrinhos. Nestes dias 24 e 25 de setembro, das 13h às 19h, a Biblioteca Pública do Estado (Riachuelo, 1190) sediará a 2ª edição da Feira Gibizeira, trazendo bate-papos, oficinas, exposições e, claro, a feira com mais de 40 artistas de diversas partes do Estado e do país. O evento tem entrada franca e tem como objetivo celebrar a cultura dos gibis, tão presente na vida de tantas pessoas e no coração daqueles que cresceram com este tipo de leitura.


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895