A família, o poder e os pecados em "O Poderoso Chefão"

A família, o poder e os pecados em "O Poderoso Chefão"

Nos cinquenta anos de "O Poderoso Chefão”, o necessário exercício de olhar para o filme como o passo inicial de uma das grandes tragédias da cinematografia americana

Fábio Rockenbach *

James Caan, Marlon Brando, Al Pacino e John Cazale na produção que estreou em março de 1972 nos Estados Unidos e em julho no Brasil

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A família, o poder e os pecados em "O Poderoso Chefão"

Nos cinquenta anos de “O Poderoso Chefão”, o necessário exercício de olhar para o filme como o passo inicial de uma das grandes tragédias da cinematografia americana

Num jardim florido, o avô brinca com o neto e, em meio aos risos da criança, tosse, cambaleia e cai, sem vida. A criança corre. O idoso está morto. Décadas depois, outro homem idoso, sentado em uma cadeira, tira os óculos do rosto cansado e olha o chão árido e seco. Instantes depois, cai sem vida. Ao lado dele, apenas alguns cachorros.

As duas cenas, separadas por décadas fictícias, estão no primeiro e no último filme de uma das mais celebradas trilogias do cinema, e são o ponto final de um exercício necessário ao olhar para ela. “O Poderoso Chefão”, o filme de Francis Ford Coppola que celebrou em março os 50 anos de sua estreia nos Estados Unidos, surgiu como uma produção despretensiosa, mas o sucesso do best-seller do qual foi adaptado cercou o projeto de tensões que tornam seu imenso apelo popular algo então inimaginável meses antes de estrear. Hoje, fatos sobre a problemática produção, curiosidades, números, diálogos e cenas icônicas são lugares-comuns a qualquer abordagem que se faça ao filme, suas continuações e seu legado. “O Poderoso Chefão”, afinal, não foi apenas o primeiro filme a superar os 100 milhões de dólares nas bilheterias, mas também é o filme que mudou todo o sistema de distribuição nos cinemas americanos, um caminho que pavimentou a inevitável ascensão dos blockbusters três anos depois. 

Porém, se os fatos e frases icônicas permanecem vitais dentro da cultura popular, é necessário um olhar mais carinhoso para os significados internos, não apenas do filme cinquentenário, mas também das outras duas obras que se seguiram, porque elas constituem um só corpo. De certa forma, os filmes II e III comemoram junto em 2022.

As mortes de Vito e seu filho Michael são o momento final da comparação entre pai e filho que constitui a base das mais de nove horas de história que se constrói nessas três obras vitais na moderna cinematografia norte-americana. É dessa comparação que se alimenta a tragédia de Michael, o personagem de Al Pacino que herda o título e as pressões do pai, chefe de uma família mafiosa norte-americana no pós-guerra, um homem que fez da terra das oportunidades seu lar e aproveita da liberdade que o sistema oferece para subverter e dilapidar o sonho americano à sua maneira. Michael herda o lugar e as pressões, para o qual ele nunca foi preparado, mas leva consigo a dificuldade de entender a grande diferença na forma de olhar para essa tarefa: se Vito, o imigrante, priorizava a família, de sangue, Michael, o americano, prioriza a “Família” mafiosa. Nessa trajetória, tudo nos filmes de Coppola parece permitir uma comparação entre os dois para entender como Michael ruma para a inevitável tragédia em tons operísticos.

Enquanto Vito separa os negócios de sua família, que o ama, Michael mistura ambos, e pune a família com suas escolhas. No percurso traçado por Coppola, se observa a deturpação da fé – a religião, afinal, é a base das cenas de abertura dos três filmes sempre essenciais porque refletem o quanto o filho se afasta do legado paterno e depois tenta se reaproximar no terceiro filme. A religião está presente na morte do irmão, Fredo, no segundo filme, e surge em momentos isolados que se repetem no capítulo final, aquele em que fé e ambição mais se mostram inexoravelmente ligadas.

Nessa jornada, alguém precisa pagar pelos pecados. Girard defendia que somente o sacrifício de um inocente poderia acabar com o ciclo da violência, que sempre tende a voltar ao seu criador. O sacrificado não merece o destino, mas desempenha seu papel para punir, ainda mais, quem desencadeia a violência. Na tragédia de Michael Corleone, são as mulheres as sacrificadas. Todas as mulheres que ele ama morrem ou se afastam, odiando-o. Seu destino, diferente do pai, é a solidão, sua recompensa pelos pecados sem remissão: se Vito levava a violência para fora de casa no primeiro filme, todas as violências surgem do portão da casa para dentro no filme seguinte. Não existe apenas um filme, os três constroem uma obra coesa.

O destino, então, é cruel. As mortes de pai e filho são idênticas na forma. Enquadradas em plano aberto, a linha do horizonte à mesma altura, ambos os corpos caídos ao chão. Enquanto o pai morre no jardim de casa, amado e ao lado do neto, Michael morre sozinho, abandonado, odiado e ao lado dos cachorros, num ambiente árido. Nesse olhar comparativo, poucas coisas são tão impactantes quanto esse simples olhar, afastado, para o destino desses personagens. 

Não é à toa que Coppola encerra sua trilogia, agora cinquentenária, ao som do Intermezzo da Cavalleria Rusticana, que completava 100 anos em 1990, quando essa cena tomou as telas do cinema: na ópera de Mascagni, ao final, a mãe chora a morte do filho. Na tragédia dos Corleone, Michael chora a morte da filha, mas já não resta ninguém, depois, para chorar por ele. 

* Jornalista, mestre em Letras, especialista e professor do curso de Jornalismo da Universidade de Passo Fundo. 

 

FICHA TÉCNICA

Título: “O Poderoso Chefão” (The Godfather)

Ano: 1972

Estreia no Brasil: 7 de Julho de 1972

Gênero: Drama. Policial. 

País de Origem: Estados Unidos. 

Duração: 2h57min. 

Direção: Francis Ford Coppola. 

Elenco: Al Pacino (Michael Corleone), Diane Keaton (Kay Adams), James Caan (Santino 'Sonny' Corleone), John Marley (Jack Woltz), Marlon Brando (Don Vito Corleone), Richard Conte (Don Emilio Barzini) e Robert Duvall (Tom Hagen). 


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