A ficção na fronteira da Amefricanidade

A ficção na fronteira da Amefricanidade

Adriano Migliavacca *

Eliane Marques é a autora da obra com histórias de gerações de uma família negra na fronteira do RS com o Uruguai

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Tem havido no país um crescente interesse pela literatura de autoria negra que dialoga com as raízes africanas da cultura brasileira; com isso, certos conceitos antes marginais vêm tomando o centro de discussões literárias. É o caso da ideia de “oralidade”, antes restrita à reprodução da fala cotidiana na página escrita – algo que vemos em obras tão diversas como as de Coelho Neto, Guimarães Rosa e na assim chamada “poesia marginal” dos anos de 1970. Com essa nova literatura negra que se desenvolve em solo nacional, a significância desse conceito se amplia. Temos o exemplo da romancista, poeta e ensaísta Conceição Evaristo, que frequentemente afirma ter crescido rodeada não de livros, mas de palavras, enfatizando que boa parte de sua formação literária se deu no ouvir histórias que as mulheres de sua família contavam, muito antes de ter qualquer contato com a literatura escrita. Dessa forma, um imaginário de narrativas, poemas e canções até então existentes apenas no sopro e na voz vem habitar os livros.

Não passou despercebida, a olhos e ouvidos mais atentos, a publicação de “Louças de Família”, romance de estreia da poeta, escritora, psicanalista e tradutora Eliane Marques. A obra se ancora em histórias vividas por gerações de uma família negra na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai, costuradas pela memória da narradora Cuandu, que se aventura em uma escrita deflagrada pela morte de uma tia que viveu como empregada doméstica de uma rica família branca. A partir do legado dessa morte, Cuandu se volta para os contos que ouviu sobre as mulheres de sua família, tendo início na trisavó, que viveu nas charqueadas gaúchas no tempo da escravidão e fugiu para iniciar a dinastia que povoa o livro. O violento serviço escravizado de retalhar carne de gado nas charqueadas não se distingue tanto do supostamente mais delicado trabalho assalariado da limpeza e da cozinha em um luxuoso casarão mid-century modern. O que de fato mudou ao longo dos séculos que se estenderam do estabelecimento da escravidão até os tempos modernos nas vidas de negros e brancos? Qual o legado da morte da tia? E qual o legado de tantas mortes quantas desfilam ao longo da obra?

A princípio, parecemos estar diante de uma típica saga familiar com gerações e narrativas que se sucedem, se repetem e se respondem. Tal impressão se desfaz completamente quando vemos conviverem com as histórias da família, bastante verossímeis em seus acontecimentos, outras cravejadas de elementos oníricos. É o caso do episódio em que a tia da narradora acompanha, em um passeio pela zona rural, um garboso “cavalheiro completo”, que, no caminho, vai se despindo das diversas partes do seu corpo até converter-se em um simples crânio. É o caso também de um sonho de um parente no qual ele é cavalgado e tiranizado por uma criança que tem só a metade do corpo. Qual a origem dessas situações tão estranhas?

Ambas provêm do célebre romance “The Palm-Wine Drinkard” (já publicado no Brasil com o título “O Bebedor de Vinho de Palmeira”), do escritor nigeriano-iorubá Amos Tutuola, obra que recorre a narrativas colhidas de tradições orais iorubás, redigida em inglês e publicada pela primeira vez em 1952 com considerável sucesso internacional e subsequentes traduções. Como podemos entender que histórias africanas que ganharam o mundo de língua inglesa na metade do século XX possam ser vividas ou sonhadas por pessoas que nunca chegaram a lê-las? O sentido da oralidade aqui se expande no momento em que vertentes se encontram e sugerem a existência de uma imaginação africana e afrodiaspórica. É aqui que o termo “amefricana”, cunhado pela pensadora Lélia González e desenvolvido pela autora de “Louças de Família” em seu trabalho psicanalítico, ganha em significância e amplitude. As referências que constituem o rico imaginário do romance, no entanto, vão além de histórias vividas pelas parentas da narradora no sul do Brasil e relatos recolhidos e escritos por Tutuola, juntando-se a eles versos da moderna poeta norte-americana Audre Lorde e os da clássica poeta suaíli Mwana Kupona, assim como cânticos litúrgicos iorubás, canções de Margareth Menezes e “Noite Estreladas”, clássicos do cancioneiro nativista riograndense e poemas da cubana Georgina Herrera.

Encontramo-nos, portanto, no terreno que une tradições orais, da África e do Novo Mundo, e a moderna literatura de autoria negra africana, americana e caribenha. Essa união tem sido teorizada há algumas décadas particularmente no mundo anglófono. Podemos pensar no historiador e sociólogo inglês Paul Gilroy, que em seu “Atlântico Negro”, propõe uma modernidade negra encontrada tanto na literatura quanto na música, mormente o rap, o jazz e o rhythm n’blues; ou podemos pensar no crítico literário norte-americano Henry Louis Gates Jr., que, em sua obra “The Signifying Monkey”, mapeia e teoriza sobre uma tradição literária afro-americana que vai da oralidade do blues à escrita de Zora Neale Hurston e Toni Morrison; podemos, por fim, recorrer ao também crítico literário nigeriano Abiola Irele, que, em The African Imagination, encontra relações entre tradições orais em línguas africanas e modernas obras africanas escritas em línguas ocidentais, sem deixar de lado seus impactos no Novo Mundo. Com “Louças de Família”, o mundo de fala latina (pois que, vertida no português brasileiro como é, a prosa de Eliane Marques é frequentemente visitada pelo espanhol fronteiriço) se faz ainda mais presente nessa discussão que vemos no mundo anglófono. Sua aclimatação em solo brasileiro não se dá sem seguir o caminho apontado pelas investigações de Lélia Gonzalez sobre a amefricanidade. Não esqueçamos da ovação recebida por Angela Davis em 2019 quando, diante de mil pessoas sedentas para ouvi-la em São Paulo, se questionou por que o Brasil buscaria nela uma referência de feminismo negro quando a própria Davis teria aprendido mais com Lélia González do que os ouvintes teriam a aprender com ela.

Não é inesperado que surja a pergunta: essa quantidade de referências, muitas delas pouco acessíveis ao público brasileiro, mais todas essas ressonâncias teóricas não tornam Louças de família um livro de leitura... difícil?! Aqui, me permito o despautério de responder uma pergunta com outra pergunta: mas a leitura precisa ser um exercício... fácil? O que a escrita de Eliane Marques nos oferece é a possibilidade de frequentação de um imaginário tão profundo e importante para nossa formação enquanto povo quanto desconhecido por nós (e por que será que tantas coisas importantes teimam em ser tão desconhecidas?). Dialogar com essa tradição, tornar-se partícipe do legado dessas histórias que a narradora Cuandu compartilha conosco pressupõe um desafio proporcional à imensa recompensa de sua aquisição. Nesse ponto, convido leitoras e leitores a deixarem de lado essa triste e empobrecedora busca pelo fácil e pelo acessível e se aventurarem nas páginas deste romance já incontornável na história da literatura brasileira.

* Professor, tradutor, doutor em Letras pela Ufrgs. Pesquisador de literatura africana. 


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895