A Força da Linguagem

A Força da Linguagem

Sérgio Schaefer *

Marli Silveira é a autora do livro "Cartas de Liberdades" (Ed. Bestiário)

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“Cartas de liberdades”, de Marli Silveira, é uma obra que se apresenta ao leitor na forma de cartas trocadas entre um presidiário e a autora. A obra revive o estilo epistolar usado por vários escritores para estruturar romances, nos quais a trama vai se definindo a partir daquilo que os fictícios autores das cartas vão permutando entre si. Um romance epistolar pode ser caracterizado por dois resultados literários que parecem significativos: primeiro, o autor do romance se reveste de uma pretensa neutralidade frente aos autores das cartas e, segundo, a temporalidade expressa na datação das cartas faz o passado do conteúdo das cartas se tornar presente.

 

“Cartas de liberdades”, entretanto, não é um romance epistolar. Tudo indica que há uma intencionalidade clara por parte da autora em querer que o apenado (com 48 anos e que não é fictício) se esclareça a si mesmo a respeito da possibilidade da liberdade mesmo estando confinado entre os muros de uma prisão. Tudo indica que a autora pretende usar a força da linguagem para chegar a este autoesclarecimento. O que, por sinal, também fazem os romances epistolares para, pé por pé – ou ep por ep, como diria Guimarães Rosa – deixar o leitor esclarecido a respeito de determinado enredo. 

 

Ao final da leitura desse quase-ensaio de Marli Silveira, percebe-se que, mesmo que o apenado talvez não tenha entendido as densas ideias filosóficas, sociológicas e antropológicas postas pela autora – com referências a Platão, Sartre, Foucault etc. e à epistemologia, ao existencialismo, à fenomenologia etc. – mesmo assim ele certamente conseguiu, por meio das cartas dele, mostrar que aquilo que os anos de aprisionamento (mais de dez) nele libertaram foram quatro coisas para ele importantes, senão não as teria citado na carta de 1º de novembro de 2022: um, o reconhecimento e a aceitação de que agiu de maneira errada e, por isso, merecedora do aprisionamento; dois, a cura da asma (que o acompanhava desde a infância); três, o emagrecimento de 20 kg (antes pesava mais de 100 kg); e, quatro, que conseguiu deixar de roer as unhas. A importância da primeira libertação não tira a importância das outras três. 

 

Diversas passagens das cartas do apenado dão a entender que a prisão provocou nele um processo catártico, tanto na mente e na alma, fato afirmado na carta de 15 de março de 2022, como no corpo. No fim de contas, na carta de 19 de agosto de 2022, ele mesmo se autoqualifica como um “preso feliz”.

 

* Doutor em Letras. 


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895