A Guerra dos Surdos

A Guerra dos Surdos

José Eduardo Degrazia *

Ilya Kaminsky nasceu em Odessa, situada na antiga União Soviética, em 1977. Além de "República Surda", é autor de "Dancing in Odessa"

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Lançado em 2019, “República Surda”, de Ilya Kaminsky, recebeu vários prêmios internacionais, e chega até nós em edição da Companhia de Letras com a competente tradução de Maria Cecília Brandi. O autor nasceu em Odessa e se exilou com a família nos Estados Unidos, onde vive ainda hoje. Não por acaso Odessa tem sido palco de bombardeios na guerra de invasão da Rússia na Ucrânia. O livro é anterior, mas traz evidentes traços da guerra (a invasão da Crimeia foi em 2014) e da situação política do seu país conflagrado. 


Composto por peças avulsas, poemas e textos curtos, que podem ser lidos independentes – inclusive foram publicados em separado em revistas literárias como nos diz o autor –, formam um conjunto que pode ser lido (e encenado) como uma peça teatral. Tratando de um tema de guerra, da luta de pessoas e o povo de uma cidade ocupada por soldados de um outro país contra a opressão, é, também, uma narrativa épica. Esse tipo de texto para ser lido e encenado, tem entre nós cultores do peso de um João Cabral de Melo Neto e Carlos Nejar.


Na cidade fictícia de Vasenska um menino surdo é assassinado por um soldado. A população passa a resistir da maneira que pode, usando linguagem para surdos para não ser entendida pelos invasores. Ao mesmo tempo, ocorrem mortes de lado a lado, linchamentos, fuzilamentos, prisões em massa. Não é um tempo idílico, com certeza, no entanto, se desenrolam vidas com suas pequenas alegrias e dores, casamentos, filhos, a viuvez. A natureza aparece com seus quadros de neve e sol, e a cidade com suas casas em ruínas depois de bombardeadas. Tem assim momentos altos de lirismo e de tensão dramática. A começar do primeiro poema, “Vivemos felizes durante a guerra (p.13): “Quando bombardearam as casas dos outros, nós/protestamos/ mas não o bastante (...).”


No segundo poema, “Petya”, o menino surdo, é assassinado pelo sargento enquanto na praça um teatro de marionetes se desenrolava. Não por acaso, Galya, a dona desse teatro se torna uma das principais insurgentes contra o poder militar opressor. No poema “Começa a surdez uma insurgência” (p.27) a população passa a não escutar mais os soldados como protesto e resistência: 

“Nosso país acordou no dia seguinte se negou a ouvir os soldados./Em nome de Petya nos negamos.
(...) Nos ouvidos da cidade a neve cai.”
No intervalo das lutas entre o povo e os soldados, momento de pura poesia acontecem, quando Alfonso fala de sua mulher Sonya, Dos casamentos antes da guerra (p. 35): 
“Você é dois dedos mais bela do que qualquer outra mulher –/ não sou poeta, Sonya,/quero morar nos seus cabelos.”

Esses momentos de tranquilidade e sossego aconteciam antes da guerra e continuam acontecendo durante ela, pois a vida continua e resiste, no poema “Pergunta” (p.57):
“O que é uma criança?/ um sossego entre dois bombardeios.”
Não por acaso essa pergunta se repete em relação ao homem e à mulher, nas páginas 97 e 141, mostrando que mesmo em meio à barbárie a ternura pode salvar a humanidade.


São muitos os achados poéticos muito bem entrelaçados no drama, como por exemplo, 
“Veja Deus –/os surdos têm algo a dizer/que nem eles podem ouvir.” (p. 61). Ou “Os presos são obrigados a andar com os braços para cima. Como se estivessem prestes a deixar o solo e tentassem sondar o vento.” (p. 67). 

Ou ainda, no poema “No vívido invólucro do céu” (p.87): 

“É você, pequena alma?/Às vezes à noite eu/ acendo uma lâmpada para não/ver.”
Poderíamos citar inúmeros momentos felizes como esses, onde a força da expressão dramática encontra a beleza da imagem poética. Mas vamos deixar para o leitor encontrar essas pepitas brilhando no texto. Nas notas da tradutora, páginas 116 e 167, ela nos diz que o autor faz várias citações de Shakespeare, e, também, encontrei sugestão de outros poetas, que se não estão literalmente mencionados, estão em sentido e imagem. Isso não quer dizer que o autor, nesse último caso, tenha lido o poeta em questão, mas podem ser ecos, lembranças ou coincidências. Na página 159 encontramos o verso: “O corpo de um menino jaz na calçada exatamente como o corpo de um menino (...)”, que lembra o famoso poema de Pablo Neruda de “Terceira Residência”, publicação da L&PM, de 2004 (Tradução de José Eduardo Degrazia”, p. 73):

“E pela rua o sangue dos meninos/”corria simples, como sangue de meninos.”
Ficam ressoando esses versos da grande poesia universal como libelos contra todas as violências e as guerras e em memória de todos os meninos assassinados.

REFERÊNCIA 
KAMINSKY, Ilya. “República Surda”. São Paulo: Companhia das Letras, 2023, 211 páginas.

 

* Poeta, tradutor e escritor. 


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895