A história por trás das obras

A história por trás das obras

Cláudia Antunes *

A edição mais antiga do acervo é de 1519, “Farsália”, um poema épico escrito pelo poeta latino Lucano

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Cada livro possui uma história que vai além da que está apresentada nas suas páginas. Ela está oculta, mas faz parte da obra — desde a ideia do autor, até a produção do manuscrito, passando pela publicação, até as últimas reedições. Muitas edições já nascem valiosas, produzidas em números reduzidos. Outras são extremamente antigas ou foram cassadas e saíram de circulação. Pensando nisso, a Biblioteca Pública do Estado (BPE), uma das instituições vinculadas à Secretaria de Estado da Cultura (Sedac), organizou a mostra “Obras raras do acervo da BPE”, com curadoria de Cláudia Antunes e Fábio Lázzari. A exposição acontece dentro da programação de aniversário dE 152 anos da BPE, na Sala Borges de Medeiros, e fica em cartaz até 28 de maio.

Ao examinar a história dos livros, nos depararmos com uma série de informações importantes que envolvem desde a época histórica da sua criação, até a situação pessoal do autor, as circunstâncias que o envolveram no desenvolvimento da obra — e a enorme cadeia de relações com outras pessoas e acontecimentos. Some-se a isso, a saga pela busca de um editor, a publicação e, finalmente, a recepção da crítica e do público leitor.

Mas não para por aí. Algumas obras, após serem publicadas, são amadas, outras são perseguidas, queimadas, escondidas, rechaçadas ou esquecidas, para muito tempo depois, retornarem à cena cultural. Um exemplo disso é a história que envolve os manuscritos de Leonardo Da Vinci (1452 - 1519). “O Códice Atlântico" é uma coleção de documentos composta de 12 volumes em grande formato, com anotações e 1.384 ilustrações do mestre italiano. Os originais passaram por várias mãos até finalmente serem editados, em 1894. Chegaram a ser requisitados por Napoleão Bonaparte, que os levou a Paris, quando invadiu a Itália, em 1793, o que atrasou em 98 anos a sua publicação. Foram impressos 280 exemplares. A Biblioteca possui o de número 214, que foi adquirido na Itália, por intermédio do poeta Mansueto Bernardi, em 1912. 

Destaques do Acervo

A edição mais antiga do acervo é de 1519, “Farsália”, um poema épico escrito pelo poeta latino Lucano. Além de impressionar pelo tempo (foi publicada quando os portugueses haviam recém chegado ao Brasil), essa obra inovou no tratamento do tema. Quando era comum os poemas épicos como “Os Lusíadas”, de Luís de Camões, e “A Eneida”, de Virgílio, usarem recursos da mitologia. Lucano (39 – 65 ) optou pela ausência de intervenções divinas na narrativa e colocou fortes críticas políticas. A história fala das guerras civis, entre os defensores de César e Pompeu, que antecederam a queda da república romana, culminando com a vitória de César, definida na batalha de Farsália. Lucano conspirou para a morte de Nero e acabou sentenciado ao “suicídio forçado”. A única obra dele que chegou aos dias de hoje é “A Farsália”, que, felizmente, consta no nosso acervo e poderá ser vista na exposição.

Outro destaque é uma edição em russo de “A alvorada da era cósmica”, de 1963, com dedicatória do grupo de cosmonautas russos, da primeira geração de astronautas, cuja figura mais importante foi Yuri Gagarin, nos anos 1960. Essa obra chegou ao acervo da BPE por doação e pertenceu ao ex-presidente João Goulart (1919 – 1976). É um livro que está inserido no espírito da corrida espacial travada entre russos e americanos, no período da Guerra Fria.

A exposição também vai mostrar os livros considerados proibidos — por atentarem contra a moral ou por criticarem a ideologia política, religiosa ou social dominante. Alguns deles chegaram a figurar nas listas do Index Librorum proibitorum, uma lista de livros acusados de conterem heresias, serem anticlericais ou lascivos e, portanto, proibidos pela Igreja Católica.

Temos também livros que foram considerados indesejáveis aqui dentro da instituição, e recomendados a não serem emprestados. É o caso de “O antigo e verdadeiro livro gigante de S. Cipriano”, que ganhou fama por tratar do tema da magia e feitiçaria. Com carimbo no exemplar indicando que “não é aconselhável o empréstimo deste tomo”. Outras obras são de conteúdo erótico, escritas nos séculos 18 e 19, a maioria de autores franceses, como “L’éspion libertin” (O espião libertino), de autoria anônima, de 1882.

Entre as obras valiosas, há as de cunho religioso. São textos fundadores de religiões e outros que foram criados para serem utilizados nos ritos sagrados. Um exemplo, que impressiona é o “Antifonário”, livro gigante escrito em latim, todo em pergaminho, publicado em 1656. É uma obra eclesiástica que contém antífonas (pequenas melodias executadas pelo coro no santo ofício). É um livro de igreja que contém as diversas partes do ofício cantado pelo coro, ou seja, um livro cantatório, com cantos gregorianos, utilizados em mosteiros. Nosso exemplar passou por algumas intempéries antes de chegar aqui, e também por um restauro feito por leigos. Possui marcas de chuva, páginas manchadas, algumas mal restauradas, mas mesmo assim é lindo! Suas páginas são de papel pergaminho, todo escrito à mão com belíssima caligrafia e iluminuras. A capa é de couro com fechos de metal. Contemplar livros assim é como entrar numa cápsula do tempo.

Entre 1300 e 1500, na Europa, o tipo de leitura destinada aos cristãos era conhecida como o livro das horas. Este livro continha preces, para as horas do dia, cenas bíblicas e um calendário que marcava festas cristãs. Uma dessas obras é “O Breviário Grimani”, adquirido pelo cardeal Dominico Grimani, em 1520. As ilustrações foram produzidas pelo pintor e iluminador Mestre de Jaime IV da Escócia (1485-1526). Atualmente, o original está conservado na Biblioteca Marciana, em Veneza. As ilustrações e iluminuras foram desenvolvidas em ciclos narrativos sobre o cotidiano da fase feudal, ao lado de cenas religiosas da época. A Biblioteca Pública do Estado possui 3 volumes do “Breviário Grimani”, com belíssima encadernação em veludo e aplicações em metal, em lateral folhada a ouro, fechada por fivelas. A edição, pertencente ao Setor de Obras Raras da BPE, é uma reprodução do original, publicada em 1901, organizada por A. W. Sijthoff e editada por Scato de Vries e S. Morpurgo, na Itália.

Na sequência, serão apresentados clássicos da literatura universal, como “Os Lusíadas”, de Luís de Camões, a coleção de Júlio Verne e “A divina comédia”, de Dante Alighieri, em edições impressionantes. Também terão destaque obras de autores sulinos como João Simões Lopes Neto, Alcides Maya, Erico Verissimo, Mario Quintana, em primeiras edições. E dos autores que foram diretores da Biblioteca Pública: Eduardo Guimarães, Manoelito de Ornellas, Augusto Meyer, Theodomiro Tostes e Darcy Azambuja, entre outros.

O acompanhamento das edições, que fascina os bibliófilos, colecionadores e amantes do livro, passa pelo cuidado e conservação das obras. Preservar esses títulos possibilita a continuidade cultural entre passado e futuro e garante o posicionamento da sociedade e dos indivíduos diante da vida.
A Biblioteca Pública do Estado funciona de segunda a sexta, das 10h às 18h, e sábados, das 10h às 17h, sempre com entrada franca.

* Doutora em Letras, jornalista, pesquisadora e analista em Assuntos Culturais da Biblioteca Pública do Estado do Rio Grande do Sul.

 


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895