A poética das artistas mães na História da Arte

A poética das artistas mães na História da Arte

Em artigo para o Caderno de Sábado, mestranda em Artes Visuais da UFRJ trata da evolução da representação do maternar na historiografia da arte

Priscilla Casagrande *

Obra de Thaís Basílio, "Colo", de 2022

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Como a representação do maternar se desdobrou através dos séculos e ainda hoje encontra resistências. Imagine um corpo de mulher, imagine esse corpo gerando uma nova vida. Não é trivial. Ter um filho, conceber um ser humano, cuidar e criar é uma tarefa extremamente potente e transformadora. E não cito essa frase romantizando a maternidade. Ledo engano. Trago aqui uma reflexão que atravessa a história da arte: o exercício do maternar tanto na representação quanto no campo artístico sempre encontrou resistência. 

Ao longo da historiografia da arte encontrarmos artistas que dialogam e abordam em suas obras as transformações do corpo, a questão do abortamento, a conexão com os filhos, a amamentação como tabu, os traumas, as rotinas, tudo isso somado à dificuldade de seguir uma carreira de artista em paralelo ao ofício de ser “mãe”. Se hoje a geração de mães artistas busca minimizar a distância entre o ideal e o real, até o século passado isso não acontecia. Na nossa história ocidental, a representação da maternidade ficou em sua totalidade voltada para a imagem das “madonas”, mulheres envoltas na aura santificada de uma idealização acerca do que é ser mãe. Essa distância entre a mãe de carne e osso e a mãe ideal, que ocupa o imaginário coletivo, expressa uma grande dicotomia que atravessou a nossa civilização ocidental por séculos. Demoramos muito tempo até encontramos representações sobre a maternidade que expressem com maior autenticidade o universo de experiências que as mulheres que se tornaram mães viveram e vivem até hoje.

A “Vênus de Willendorf”, figura feminina da idade da pedra é um exemplo da idealização do corpo da mulher, simbolizando através de suas formas voluptuosas a fertilidade e fecundidade. Ao que tudo indica este foi que o primeiro artefato a ser resgatado da era paleolítica. Descoberto na Áustria em 1908, por Josef Szombathy, a estátua encontra-se no Museu de História Natural de Viena. Ao contrário do período pré-histórico, as representações das mulheres que eram mães nos períodos da arte medieval e da renascença traziam a maternidade como símbolos dos princípios da doutrina cristã. Nada dizia respeito ao campo de conhecimento da experiência da maternidade real, mas de um olhar com valores de transcendência entre as limitações da vida humana e a vida espiritual. 

Já no renascimento o padrão a ser reproduzido eram os de “Madona”, mais conhecido como da mãe cuidadora, piedosa e terna. As Marias e seus filhos surgem na pintura italiana como espelhos do ideal perfeito cristão, colocando em cena atmosferas comoventes da mãe que suporta com resignação a dor e a todo o sofrimento. Ainda no período do barroco e rococó, mães doces e afetuosas, eram retratadas ao lado dos filhos.

Foi só no período do entresséculos, que a artista norte americana Mary Cassatt (1844-1926), pintora renomada do movimento impressionista, representou bem a transição da mãe sagrada para a mãe em momentos íntimos com seus filhos. A artista foi revolucionária ao, por exemplo, pintar uma mulher amamentando, com o seio nu. A liberdade em amamentar sem tabu foi, certamente, um pequeno passo, mas relevante para romper com as restrições da maternidade na História da Arte. 
Do século XIX para cá muito se evoluiu, mas nem todas artistas mães tiveram a oportunidade de representar a si mesmas ou suas vivências. Na arte contemporânea esses espaços têm sido preenchidos com a produção de jovens artistas visuais que tratam das relações da mulher como mãe.

Atualmente a carioca Thaís Basílio tem uma produção pictórica acerca da maternidade. Em março deste ano, inaugurou ao lado de outras artistas a exposição Maternagem: percepções sobre o nascer, mostra que reúne artistas com narrativas sobre o maternar, aberta até junho, no Sesc Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. “O tema maternidade, na minha série ‘Corpos-máquina’, passa como um fio condutor, interligando questões sobre o corpo a temas como trabalho, território, política, gênero, raça e novas tecnologias. Tem sido interessante dar contornos ao corpo feminino, trazendo imagens de corpos grávidos, que talvez sejam pouco explorados na história da arte ou veiculados na grande mídia, mas que eu discuto em minhas pinturas”, revela Thais Basílio.

A curadora da mesma exposição e também mãe, Carolina Rodrigues, compreende que a criação artística é atravessada pelas vivências do cuidado, do investimento no desenvolvimento intelectual de outro ser humano, na construção de uma afetividade que transcende os limites da racionalidade. “O que posso dizer é que produzir, enquanto curadora e mãe é partir de um contexto totalmente diferente do que se espera de uma produção intelectual nos padrões da masculinidade branca e ocidental. Nossa escrita, por exemplo, é atravessada por interrupções das urgências das necessidades básicas de uma vida que depende de nós. Acho que a Maternagem fala um pouco disso também, não apenas da materialidade do cuidado e da relação biológica entre mãe e filhas/filhos, mas de toda uma dinâmica de vida e de estrutura de pensamento que são movimentadas a partir dessas condições, bem como a conexão com a ancestralidade e o compromisso com a futuridade”, afirma a curadora.

Assim como ela, a artista paulistana Renata Egreja, partilha da dualidade entre o trabalho como artista visual e mãe. Recentemente, durante a abertura da sua primeira exposição individual, Nem toda rosa é rosa, na capital fluminense, precisou deixar os dois filhos no interior de São Paulo para que não perdessem as aulas. A pintora também aborda a questão do gênero e da potência do feminino em seu repertório visual. “Minha pintura é de intenção ornamental. Eu pinto como quem arranja um vaso de flores na mesa do jantar.

Imagino formas como quem tricota uma toalhinha. Deposito a tinta na tela como se o pincel dançasse livre na tela. E em todas essas intenções é o meu corpo de mulher que cria, é o corpo de uma mãe. Acredito que por isso minha pintura é inegavelmente feminina”, avalia a pintora.

Enquanto as artistas promovem essa discussão sobre a inserção da maternidade em seus repertórios de maneira real, também é preciso garantir que essas mães artistas possam ter o mesmo respaldo financeiro que é dado aos homens no mercado da arte. Hoje, as mulheres ganham cerca de 20% menos do a que os homens no Brasil, é o que mostra levantamento da consultoria IDados, com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No território artístico essa diferença é ainda maior quando se trata de artistas mães: a desigualdade de gênero no meio artístico se mostra bem presente, visto que da totalidade das obras em exposição no país apenas 8% são de autoria de artistas mulheres, destas, menos e 2% são mães.

Assim, percebemos a necessidade de não apenas criar projetos e exposições que possam efetivamente alimentar o trabalho artístico dessas mulheres, mas também trazer outras mães que trabalham com os processos artísticos, sejam elas pintoras, escultoras, desenhistas, curadoras ou pesquisadoras para serem incluídas nestes espaços e lugares de fala. Ainda há de se quebrar muitas barreiras em um território dominado pelo gênero masculino, mas há um movimento que, aos poucos, desde aquelas pinturas de Mary Cassatt, vem abrindo espaços para as vozes que nos mostram, de peito aberto, as dores e as delícias de ser mãe.

* Mestranda em História e Crítica da Arte pelo PPG em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFRJ


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