A poesia dá praia

A poesia dá praia

O poeta e professor Diego Petrarca apresenta o seu livro “Praieiros”, lançado pela editora Ipê Amarelo

Correio do Povo

"Perguntei ao mar e às ondas/ quanto tempo ainda me resta?/ Sob a cortina das nuvens,/ o sol abriu uma fresta."

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O livro “Praieiros”, lançado em fins de outubro pela Editora IpêAmarelo e com sessão de autógrafos no dia 09 de novembro na 69ª Feira do Livro de Porto Alegre, foi motivado pela criação de poemas breves, como flashes instantâneos do cotidiano. O cenário, concentrado no litoral do Rio Grande do Sul, foi determinante para a captação das imagens recolhidas e transformadas em retratos poéticos.

Ao menos essa era a intenção: imagens inspiradas nas caminhadas flanadas pela praia. Costumo dizer que não se trata de um livro de haicais, mas também feito de haicais, ou melhor ainda: escrito com a instância do haicai, menos pautado no gênero, mas com sua matéria de poesia. Vamos a um brevíssimo histórico:

O haicai apareceu num poema com mais de três versos, dentro do gênero Tanka, poema curto tradicional japonês formado por 5 versos e 31 sílabas. A primeira parte do Tanka é um terceto e a segunda, um dueto. Antes de o haicai constituir-se numa expressão autônoma, era parte integrante do Tanka.

Por aqui, o abrasileirado haicai tem os primeiros sinais a partir das traduções de Monteiro Lobato. Pode-se dizer que os primeiros escritos com a forma do haicai em terras brasileiras começaram via modernismo deflagrado pela Semana de 22, através do poeta Guilherme de Almeida.

Nesse sentido, talvez os modernistas pretendessem incorporar o haicai como uma de suas práticas criativas com a poesia, a semelhança com o poema japonês estava no terceto enxuto, com a ousadia coloquial e o despojamento previsto pela linguagem modernista. Oswald de Andrade, em muitos dos seus poemas, mas também em sua prosa cubista, opta pela brevidade e textos curtos (muitos em terceto), tornando-se uma de suas marcas poéticas assim como uma das forças expressivas do próprio modernismo.

Na poesia dita pós-moderna, o haicai está adotado como uma forma definitiva no Brasil, a ponto do gênero parecer propício a esse atual período nosso em que a rapidez da informação e a comunicação visual salientam-se, e a brevidade incorpora a surpresa do sentido, trazendo também sonoridade, a rima e menos ligadas à natureza, características que não estavam no conceito clássico do gênero.

Sempre costumo lembrar o que Octavio Paz mencionou em suas reflexões sobre essa prática poética: “Duas realidades inseparáveis e que, no entanto, jamais se fundem inteiramente: o grito do pássaro e a luz do relâmpago.” Do mesmo modo, é pertinente outra citação sobre a prática do haicai pelas palavras de Paulo Franchetti, autor, professor e especialista do gênero, que sugere: “redução do poema à experiência sensível concreta”.

O livro “Praieiros”, apresentado aqui, se enamora com o haicai e reconhece nessa forma um modo de expressar um pensamento e sensibilidade muito apropriados a uma atual experiência de escrita do seu autor, mas do mesmo modo, se aproveita das aberturas e desdobramentos do gênero que outros autores já deflagravam e praticaram muito antes, que de diversas maneiras diferem da forma clássica: o mestre zen do haicai, Matsuo Bashô, quem disse: Não siga os antigos. Procure o que eles procuraram.

E talvez por isso o haicai perdure e sempre esteja sendo praticado em todo lugar do mundo, a ponto de atrair novos escritores, leitores, serve de modelo para textos publicitários, refrãos de canções (salve a redondilha), e conforme já previu Roland Barthes, está espalhado em partículas de romance, de modo a se compor em prosa pelo ímpeto da percepção do presente e flagra do instante e também como processo criativo através do fragmento. Não seria exagero afirmar que existem passagens haicaísticas (não o haicai propriamente dito) na prosa de Guimarães Rosa, Jack Kerouac (que também escreveu haicais em estilo beat andarilho), ou nos fragmentos de Fernando Pessoa; na brevidade de Hemingway, nos poemas de João Cabral ou Manoel de Barros. O haicai é também o ato de expressar o alumbramento da linguagem mediante o efêmero. Praieiros seguiu esse caminho em seus poemas curtíssimos que abrem uma gama de significados. Seguem alguns exemplos do livro:

Mais que vermelhas

festivas na mesa

bando de cerejas

Vento de sobra

escorrega a gota

galho afora

Café na mesa

até o passarinho

canta mais

perto

Frente à lareira

o fogo é um

espelho

noite

adentro

Reconhecemos nos exemplos o haicai típico (embora não clássico), mas também outras formas de expressar em linguagem simples uma imagem poética precisa que incitam brechas interpretativas mais subjetivas. Outro ângulo de sentido se desdobra dentro de uma imagem mais explícita. É como se aquele conceito do haicai clássico (haimi), isto é, o gosto de haicai, prevalecesse para comunicar o poético para além da forma convencional.

No fim das contas, "Praieiros” é um livro de autor andarilho de litoral, quase como um diário de bordo capsulado, prevendo surpresas semânticas encravadas nas cenas habituais: onde o doce do mar salga mais nos olhos que nos cabelos.


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895