‘A principal mudança a partir de 22 diz respeito à linguagem’

‘A principal mudança a partir de 22 diz respeito à linguagem’

Doutora em Letras pela Ufrgs explica aspectos da Semana de 1922 que influencia até hoje a arte no Brasil

Carolina Santos*

Márcia: ‘As mulheres tiveram um papel importante, porque abriram caminho em terreno no qual os homens tinham tradição’

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A Semana de Arte Moderna de 1922, completa seu centenário este ano. Com o intuito de promover rupturas no interior das artes plásticas no Brasil, pintores, músicos, poetas e arquitetos brasileiros se reuniram, em São Paulo, inspirados pelos ideais do Modernismo. Este movimento artístico que teve início no século XX, queria subverter o tradicionalismo das escolas literárias anteriores. Em entrevista, Márcia Lopes Duarte, doutora em Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), comenta alguns aspectos do evento que repercute gerações após o seu acontecimento. 

CS - O princípio da Semana de Arte Moderna era promover rupturas no interior das artes plásticas do Brasil. Esse objetivo foi alcançado?

Márcia Lopes Duarte - O objetivo foi alcançado, uma vez que, após a Semana, não apenas as artes plásticas, mas também as demais artes entraram em um processo de dessacralização de alguns temas, o que levou o Brasil a um novo paradigma cultural, ainda que muito do que se produziu na sequência mantivesse o pendor parnasiano característico da arte até então. A principal mudança que se propagou, a partir de 1922, diz respeito à linguagem, ou seja, o modo de representar a realidade e a perspectiva, o olhar, do artista para esta mesma realidade. 

CS - Pagu, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Elsie Houston e Eugênia Álvaro Moreira, são exemplos de mulheres que atuaram no modernismo. Como se pode definir o papel delas, não somente para a arte, mas na conquista de novos direitos?

Márcia - As mulheres, ainda que não tivessem centralidade no movimento e, por conseguinte, na Semana, tiveram um papel importante, justamente porque abriram caminho em um terreno no qual somente os homens tinham tradição. As artes plásticas e a literatura, no Brasil, estavam circunscritas a padrões não apenas estéticos. Desse modo, as mulheres que estiveram ligadas ao modernismo, a partir de 1922, precisaram desbravar não apenas as questões formais, mas, mais do que tudo, lidar com as dificuldades advindas de sua própria condição. Muitas delas foram malvistas pela sociedade da época, por sua dupla falta: por um lado, estavam associadas aos preceitos modernistas, por outro, eram mulheres e queriam romper o cerco e produzir obras de arte. 

CS - Quando pensamos no evento e no modernismo, os locais que mais se destacam estão no sudeste do país, mas como a Semana de Arte Moderna influenciou o Sul do Brasil, para além do eixo de São Paulo?

Márcia - A Semana de Arte Moderna e, principalmente, seus desdobramentos vão influenciar de modo significativo o âmbito das artes e da cultura do Brasil como um todo. No Sul do Brasil, a poesia, o romance e o teatro foram amplamente modificados a partir dos preceitos do ideário modernista. Um livro que pode exemplificar tal mudança de perspectiva é o romance Os ratos, de Dyonélio Machado. O livro se estrutura como um grande labirinto, pelo qual o leitor vai sendo conduzido, acompanhando o protagonista, Naziazeno Barbosa, pelas ruas de Porto Alegre, com o intuito de conseguir dinheiro para pagar o leiteiro. Este é um enredo tipicamente modernista, com uma linguagem sufocante, cujo objetivo, mais do que deleitar o leitor, é inquietá-lo. 

CS - Que obras da literatura, música, artes plásticas e audiovisuais contemporâneas se inspiram nos ideias da Semana de Arte Moderna?

Márcia - No que se refere à literatura, uma obra atualíssima que reelabora algumas das questões importantes da Semana é Torto Arado, de Itamar Vieira Junior. A linguagem, os personagens, o assombro, isso é recorrente no ideário modernista e está presente no livro do autor baiano. É um outro momento, então as questões de fundo são outras, mas, no cerne, há uma raiz modernista. Do mesmo modo, o filme Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, traz, em sua essência, os preceitos modernistas. Nada mais antropofágico do que a atitude dos moradores de Bacurau em relação aos “gringos” que ameaçavam a cidade. O fato de o filme ser considerado “violento”, demonstra exatamente a perspectiva de deglutição e regurgitação da própria violência que havia sido usada contra a cidade.

CS - Atualmente vemos um aumento nas críticas sobre o evento, muitos apontam como os artista fazam parte da elite cafeeira da época, e que deixaram de lado temas como a escravidão, em que medida você concorda com este revisionismo? 

Márcia - Há, efetivamente, críticas à Semana de Arte Moderna desde o seu âmago, visto que algumas das apresentações chocaram o público e foram vaiadas. Ou seja, desde 1922, a Semana nunca foi uma unanimidade, por força de sua controversa centralidade. São Paulo foi o epicentro do modernismo brasileiro, provavelmente por conta da elite cafeeira e seria complexo imaginar que esta mesma elite desviasse o foco de si mesma. Entretanto, é preciso compreender o papel do movimento modernista na ruptura com relação aos padrões que estavam estabelecidos para a arte brasileira. Desse modo, se nem tudo o que se fez depois de 1922 precisa necessariamente estar atrelado à Semana, é certo que nós, como Brasil, não somos os mesmos depois de Macunaíma. O herói sem nenhum caráter, forjado pelas mão do grande modernista Mário de Andrade, é farol para a arte e a cultura visceralmente brasileiras.

* Supervisão de Luiz G. Lopes


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895