A solidão de quem espera

A solidão de quem espera

Gustavo Melo Czekster *

Guilherme Azambuja Castro é o autor do livro de contos "Topografias da solidão"

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Quem é leitor sabe: existem livros que passam e outros que ficam. Assim como alguns livros passam pela nossa leitura e logo se perdem nas curvas da memória – talvez se salve uma cena, ou quem sabe o trejeito de algum personagem, ou uma sacada espirituosa -, outros cravam fundo as suas garras, a ponto de se confundirem com as nossas memórias, como se escritor, personagem e leitor se tornassem uma só pessoa. Platão dizia que não aprendemos nada, mas simplesmente recordamos algo que já estava no nosso interior, e foi assim que me senti ao final da leitura de “Topografias da solidão” (Zouk), de Guilherme Azambuja Castro: como se um véu estivesse sendo levantado e, enfim, eu fosse capaz de dar nomes e formas para sentimentos que existiam no meu interior, mas ainda não tinham sido nomeados. Isto talvez explique o fato dele permanecer de forma tão vívida na minha memória: eis um daqueles “livros que ficam”.
Mais do que revelar a visão de mundo do seu autor, “Topografias da solidão” apresenta a geografia mítica de um lugar real – Santa Vitória do Palmar, mas poderia ser qualquer cidade do mundo – e povoa esse local de personagens tão humanos que é impossível não encontrá-los nas nossas memórias: quem nunca saiu para passear sozinho com uma figura paterna e, subitamente, no olhar do outro, percebeu-se pela primeira vez adulto? Quem nunca teve uma tia, avó, amiga ou vizinha mais velha que era, ao mesmo tempo, a porta para um outro mundo de sensações e a feroz zeladora dos costumes que nos impedia de entrar nesse excitante universo? Quem nunca teve um amigo ou amiga que “ficou para trás” na vida – enquanto evoluíamos e vivíamos, ele ou ela nunca saiu do mesmo lugar? Talvez não soubéssemos que essas personagens são portadoras de nuances e profundidades insuspeitadas capazes de não somente justificá-las, mas torná-las inevitáveis, presas a um destino cruel que exige a existência de figurantes para que possamos crescer na história de nossa própria vida.
 
Em meio a uma literatura contemporânea que esconde a fragilidade dos seus temas atrás de um maniqueísmo irreal – bem contra o mal, rico contra o pobre – e chama de “adultos” conflitos que não passam de superficialidades insossas, “Topografias da solidão” é um legítimo livro escrito para leitores maduros, não somente na idade, mas também no espírito. Leitores que não têm medo de entrar nos corredores escuros da sua consciência para ver o que mora dentro deles. Leitores sem receio de perceber que, no final do labirinto, o monstro que os espera é eles mesmos. Não quer dizer que o livro de Guilherme Azambuja Castro tenha temas “proibidos” ou que não seja indicado para jovens, muito pelo contrário: além de ser uma obra escrita de forma acessível e direta, quanto mais cedo o leitor ou leitora tentar decodificar (ou entender) um conto bom e transportá-lo para a própria vida, melhor será para o seu crescimento, inclusive para evitar a horda de infantilidades que parece correr alegremente pelo mundo.
 
Assim como outros ótimos autores e autoras, Guilherme Azambuja Castro mergulha no passado e o revive por meio da literatura, fazendo aquilo que um famoso locutor esportivo bradava, “diga aí o que só você viu!”. O olhar do escritor sobre o mundo é diferenciado e, mais do que a técnica ou o estilo, é preciso trabalhar o senso de observação: toda situação pode gerar uma boa história, mas é necessário retirar excessos, inconsistências, pequenas distrações, para então ingressar nas camadas onde o humano se esconde e, enfim, fazê-lo ressoar. Para chegar a este ponto, deve-se trabalhar a forma até o grau da exaustão completa – do autor e do texto –, a fim de que o verdadeiro ouro surja em meio ao barro. Nesse quesito, Guilherme possui extrema habilidade: praticamente não existem sobras ou excessos nos seus contos. Eles são feitos com extremo cuidado, equilibrando-se na suave linha entre tirar demais e preservar a beleza rítmica da prosa. Na condição de alguém que acompanha a trajetória de Guilherme há muitos anos – o seu “O amor que não sentimos e outros contos” (Cepe, 2016) é outro livro exemplar -, sei o quanto ele trabalha o texto até deixar o mínimo absolutamente necessário, mostrando a máxima de ouro do conto literário, “menos é mais”.
 
Em “Topografias da solidão”, Guilherme Azambuja Castro presta seu tributo a Hemingway, outro mestre da narrativa curta e do corte imprescindível para deixar o efeito mais forte. Essa admiração vai além do estilo, pois Guilherme também coloca um alter ego fantasmático nos contos, o Binho, que às vezes aparece de longe, em outras está no centro da narrativa. Os contos dialogam entre si: a personagem que perde o braço em um acidente nunca mostrado, só mencionado, aparece em outros contos, quase como uma presença dotada de assombro, em especial quando o narrador de um conto, em determinado momento, afirma a sua surpresa ao ver o sorriso do amputado em uma foto: “um tipo de aceitação difícil de compreender, mas que ele, Carlos, sabe que também a possui. (...). Diz: apesar de tudo, a única e mesma vida que se pode ter aqui é esta e ela prossegue”.
 
Não só Hemingway é homenageado por Guilherme, mas também o grande tema do livro, que é a solidão. A solidão dos pampas se reflete nas ruas desertas de Santa Vitória de Palmar, no empobrecimento econômico das famílias, nos campos longos povoados de noite, no velho que furta um bilhete de rifa em busca do sonho de fugir da própria vida, no diálogo do homem que vai visitar a viúva do amigo e, ao mesmo tempo em que pranteia o falecido, também está ali para juntar sua solidão com a dela em um ato de amor. São instantâneos repletos de humanidade e sutileza, tornando as cenas descritas por Guilherme semelhantes às pinturas de Edward Hopper: homens e mulheres sozinhos, contemplando o horizonte, em busca de algo que não sabem o que é, mas que não desistem de esperar. Não será essa a verdadeira condição humana – estar em uma eterna espera por algo ou alguém que vai acabar com a nossa solidão?
 
*  Advogado, formado em Direito pela PUC-RS, mestre em Letras (Literatura Comparada) pela Ufrgs e doutor em Escrita Criativa pela PUC-RS.  É escritor, autor de dois livros de contos: “O homem despedaçado” (Dublinense, 2013) e “Não há amanhã” (Zouk, 2017). Em 2021, lançou o romance "A nota amarela" (Zouk), vencedor do Prêmio da Academia Rio-Grandense de Letras 2022 na categoria Narrativa Longa.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895