A vida do pai de um gênio

A vida do pai de um gênio

Débora Mutter *

"Após a leitura de ‘Leopold, uma novela’, de Assis Brasil, acredito estar diante do melhor livro do escritor"

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A leitura de “Leopold”, uma novela, último livro de Assis Brasil, lançado, neste ano, pela Editora Zain, deu-me tal e tão sólida alegria intelectual, que acredito estar diante do melhor livro do escritor. Sei que não se diz algo assim impunemente, mas posso justificar, o livro oferece caminhos bastantes para isso. 

A história de Leopold, diferentemente do conflito humano do herói, é simples, mas é no arranjo, na cronologia, na linguagem, na certeira abordagem ficcional de uma vida, sobretudo, na intimidade entre tema e forma que está a grande arte.  O herói foi inspirado no pai do grandíssimo Wolfgang Amadeus Mozart. Leopold Mozart foi músico, professor e autor de um livro sobre ensino de violino, sendo mais conhecido no universo da música de concerto.


Assis Brasil resgata essa figura e o focaliza sob o estrito drama de ser o pai de um gênio da música. Iluminista, embora católico, homem da alta cultura doSéculo das Luzes, transita com desenvoltura pelas ciências e pelas artes. Leopold é um personagem forte, com uma tragédia íntima, que envolve sua vaidade de pai e de músico, contando sua história em primeira pessoa. Aceitamos entrar e seguir numa diligência como ouvintes invisíveis de uma narrativa com marcas da oralidade e jogos de esconder e mostrar. Depois, descobrimos que ele domina também a escrita. É músico e é escritor. É assim que forma e conteúdo se enlaçam sem artificialidade, por terem origem na natureza do herói e no seu drama de consciência.


A novela. A bordo de uma diligência, no retorno de visita ao filho Wolferl em Viena, Leopold rumina um acontecimento avassalador para seu propósito de vida; propósito que, há 25 anos, ele assumiu, quando o dom de seu filho, então com 4 anos, revelou-se diante dos olhos pasmados da pequena família – Leopold, a mãe Annamaria, a irmã Nannerl. Crente ardoroso, de temperamento inflexível, Leopold consagrou esse como o Dia do Milagre, por interpretar que a revelação do talento do menino implicaria um mandamento divino. Deus lhe teria concedido, e até o final de seus dias, a missão de transformar o filho no maior compositor da Europa.


A partir daí, Leopold abandona a carreira de compositor, para ser o professor e mentor de Wolferl, porque, afinal, o Iluminismo alemão aceitava a convivência entre razão e sensibilidade por entender que ambas teriam origens em Deus. Com esse perfil, sob solavancos e percalços da viagem, Leopold conta suas muitas viagens por cortes europeias, apresentando o milagre do pequeno gênio, que ele exibia como um troféu, mas, também, para que tivesse lições com grandes mestres da época.
Leopold conduz uma narrativa, meio errática, sussurrada para ouvidos adormecidos de um casal anônimo com quem divide a viagem. Ou seja, ele narra para si mesmo, para recuperar algo que lhe escapou ao longo de 25 anos e que, com uma única frase, Haydn desnudou o equívoco sob o qual assentou sua existência. Leopold poderia apenas pensar, mas não. Ele fala para ouvir a própria voz, para organizar sua alma, para desencobrir uma verdade, ele fala para que possamos conhecê-lo por ele mesmo. 


E aqui destaco o acerto da narrativa em primeira pessoa e admito que fui tentada a seguir um dos primeiros caminhos interpretativos, que é essa personagem de alma ambígua. Impossível não lembrar da máxima de Sócrates: “Fala para eu te veja.” Baseada em seu método para conhecimento da verdade, com primazia da palavra oral, o filósofo acreditava poder desmascarar supostos sábios, por entender que a palavra não era fim, mas meio para alcançá-la. Talvez, por isso, Leopold precise falar, para conhecer a si mesmo. A frase “Conhece-te a ti mesmo”, atribuída a Sócrates, segundo o filósofo francês Michel Foucault deve abranger um domínio mais geral do cuidado de si. Leopold, que achava Sócrates e Platão sonhadores, estaria ocupando-se de si para alcançar uma verdade? O caminho é tentador, mas aí lembramos também de Freud, e o melhor é deixar essa seara aos psicanalistas. 


Voltemos aos elementos formais e artifícios do texto, cuja relação com o tema compõe um sofisticado cardápio de virtudes estéticas. Entre tantos, escolhi abordar o que podemos chamar de uma estética do movimento, presença incontroversa no texto, a começar pela viagem, por si só, sinônimo de movimento. Passemos ao arranjo dos episódios, à cronologia narrativa, à presença do movimento na visualidade de cenas e na descrição de músicas.


A viagem física corresponde também a uma viagem interior. Ambas permeadas de percalços. Nelas estão contidas outras ao longo dos 25 anos, as quais repercutem e são replicadas não apenas em mise en abyme, como reaparecem com pequenas variações, omissões e acréscimos. É o caso da narrativa sobre o Dia do Milagre e também o episódio da dispensa de seu aluno Berger. Uma estratégia que, semelhante aos movimentos de uma peça musical, retoma, repete e varia um tema. Há sugestão de movimento também na viagem metafórica, no túnel de sal das minas de Salzburg, que Leopold percorre guiado por uma lanterna imaginária até perceber que Wolferl soltou sua mão. Enfim, a narrativa da viagem até Salzburgo é uma vigem interior, revisional, e se estrutura a partir de várias viagens e diligências.


Há movimento no manejo e arranjo dos episódios. Longe de ser linear, a cronologia narrativa é um vai e vem que impõe movimento emocional e intelectual também ao leitor submetido a guinadas laterais nas digressões e nos recuos ao passado cada vez mais longínquo; uma sintaxe narrativa acidentada que se assemelha ao andar do caranguejo, metáfora adotada por Leopold, que evita o ponto nevrálgico do relato, seu acerto de contas íntimo: “E aqui eu retomo o ponto em que estava, no ano 79.” (p.189)


O movimento comparece também na plasticidade das belíssimas descrições de cenas e de músicas, que nos inserem não apenas no espaço, mas, sobretudo, nos ambientes criados pelo filtro emocional de Leopold. Entre tantas, recomendo a cena da chegada da prima Bäsle em Salzburgo. (P.155). Sublinho também a sincronia de movimento entre hesitações advindas da viagem interior, vale dizer, das emoções, o ritmo da narrativa e o andar da diligência, que faz coincidir momentos sombrios e cheios de culpa com o ritmo acidentado da estrada e a consciência do narrador, a mencionar a “sacolejante diligência em que me encontro”. 


Já momentos mais suaves coincidem com o rodar suave, da “diligência em que ouço o ritmo cadenciado dos eixos das rodas”. Ou ainda quando evita “atropelar os acontecimentos, não agora que estamos numa estrada mais plana e a diligência sacode menos.”

 
Por fim, lembrar que nada disso é ao caso. A mão do ficcionista está em cada uma dessas “coincidências”, e isso é arte. 


* Doutora em Letras pela Ufrgs. Pós-doutoranda em Letras pela PUCRS. Autora de  Autora de ‘Um romancista ao Sul: a ficção de Luiz Antonio de Assis Brasil’ (Besouro Box).

 


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895