Apagamentos da Semana de 1922

Apagamentos da Semana de 1922

"O que gostaríamos de registrar, nessas comemorações da Semana de Arte Moderna de 22, é a ausência da intelectualidade negra na cena pública da época, a invisibilidade que caracterizou autores e obras contundentes como as que acabamos de citar e a inaudibilidade de suas vozes que faziam fortes denúncias às crenças racialistas...”

Zilá Bernd*

Vejamos o caso de Lima Barreto, em ‘Os Bruzundangas’ (1922). Nessa obra menos citada, verifica-se crítica contundente à ordem social no Brasil

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Afirma-se frequentemente que os afrodescendentes não participaram do movimento modernista brasileiro. Temos que prestar atenção a dois apagamentos consideráveis: Lima Barreto (1888-1922) e Lino Guedes (1897-1951) cujos registros foram completamente deletados no período em que se desencadeavam as manifestações da Semana de Arte Moderna e seus desdobramentos com o movimento Pau-Brasil. 

Suas obras, embora encarnem em muitos aspectos os ideais modernistas, ficaram à margem desse processo. Quais as razões de tais ausências? A época era de fortes manifestações de racismo no Brasil e a cor da pele e a origem humilde desses dois escritores, contribuíram para que ficassem à margem do projeto modernista, apesar de ambos serem, na atualidade, reconhecidos como autores de grande importância no panorama da literatura brasileira. As principais propostas dos Modernistas como ausência de formalismo, ruptura com o academicismo e o tradicionalismo, crítica ao modelo parnasiano e às estéticas conservadoras do século XIX, influência das vanguardas artísticas europeias e valorização da identidade e cultura brasileira, estavam contempladas nas obras de Lima Barreto com toda a evidência e na de Lino Guedes sobretudo no que diz respeito ao combate às posições racistas das elites brasileiras. 

Se os Modernistas de 1922 se caracterizaram pela irreverência e pela iconoclastia, as posições antirracistas desses dois autores afro-brasileiros se enquadrariam no âmbito de um movimento que se notabilizou pelo combate aos formalismos e todas as formas de autoritarismo. A crítica sistemática que desenvolveram no sentido de criticar a hipocrisia das elites brasileiras, deveria ou poderia tê-los enquadrado na revolução modernista levada a cabo por autores da vanguarda da época como Mario de Andrade e Oswald de Andrade. Vamos tentar entender então as razões de tais ausências da cena literária fervilhante de 1922. 

Lino Guedes, embora tenha sido autor de 13 livros, para além de crônicas centradas na problemática do lugar do negro na sociedade pós-escravista, não mereceu destaque na literatura brasileira e não teve participação nos eventos associados ao Modernismo brasileiro. De acordo com Oswaldo de Camargo, autor afro-brasileiro que dedicou um aprofundado estudo sobre Lino Guedes, “o negro passou ao largo do movimento de 1922”, considerando não ser esse o caminho para que a coletividade negra conquistasse seu espaço. Ainda segundo Camargo (2016), Lino Guedes pensava que o caminho seria aproximar os negros da literatura pela via dos versos de 7 sílabas popularizados pelo cordel e pela oralidade e banidos do projeto modernista. Para o poeta, a comunidade negra deveria assumir uma postura moralizante, através da qual poderia garantir seu lugar na sociedade branca. No poema Novo rumo!, do livro “Negro Preto Cor da Noite”, de 1932, assinala:

“Negro preto cor da noite”
Nunca te esqueças do açoite
Que cruciou tua raça.
Em nome dela somente
Faze com que nossa gente
Um dia gente se faça! 

Embora estivesse, a exemplo dos modernistas, rompendo com padrões anteriores ao Modernismo, por assumir claramente o combate ao racismo, fortemente entranhado na sociedade brasileira pós-abolição, que pouco ou nada mudara na postura em relação à comunidade negra, o poeta manteve padrões estéticos refutados pelos modernistas. Assim, se Lino Guedes renovou ao tentar vincular a literatura brasileira à luta contra o preconceito racial, não foi considerado pelos modernistas que repudiavam os moldes literários que de algum modo lembrassem os padrões do século XIX. 

Vejamos o caso de Lima Barreto, no livro “Os Bruzundangas”, publicado em 1922. Nessa obra menos citada do autor, verifica-se uma crítica contundente à ordem social no Brasil, apresentando esse povo fictício - “os bruzundangas” - com todas características dos brasileiros da época vivendo em um país minado pela corrupção, pela hipocrisia, pela valorização descabida de títulos como o de “doutor” que eram comprados pelos ricos, pelo deslumbramento e pela servilidade dos bruzundangas diante dos modelos europeus. Enfim toda a pauta criticada pelos modernistas aí está, detalhadamente ironizada e fortemente satirizada. Seria uma obra que poderia ter sido assinada por qualquer um dos mais brilhantes autores da revolução modernista em pleno andamento à época. Por que passou despercebida? Talvez pela trajetória errática de Lima Barreto mais de uma vez internado em hospícios, por seu alcoolismo e por sua postura à margem dos debates acadêmicos. 

O que gostaríamos de registrar, nessas comemorações da Semana de Arte Moderna de 22, é a ausência da intelectualidade negra na cena pública da época, a invisibilidade que caracterizou autores e obras contundentes como as que acabamos de citar e a inaudibilidade de suas vozes que faziam fortes denúncias às crenças racialistas dominantes à época que atribuíam à “mistura de raças inferiores” a causa das mazelas de nosso país, seguindo as teses racistas de Artur Gobineau, crítico ferrenho da mestiçagem. 

REFERÊNCIAS: 
BARRETO, Lima. Os Bruzundangas (1922) Rio de Janeiro: Editora Vermelho Marinho, 2019. 
GUEDES, Lino. Novo Rumo! IN: BERND, Zilá, org. Antologia de poesia afro-brasileira; 150 anos de consciência negra no Brasil. Belo Horizonte: Mazza, 2011. 
CAMARGO, Oswaldo. Lino Guedes: seu tempo e seu perfil. São Paulo: ciclo contínuo editorial, 2016.

* Zilá Bernd. Professora. Universidade La Salle/RS/Brasil. Pesquisadora CNPq


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895