Apenas Pintura. Apenas?

Apenas Pintura. Apenas?

Paulo Rosa *

Detalhe de pintura de Alfredo Aquino

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Vórtex. O latinismo, associado a turbilhão, faz parte da mais recente mostra de Alfredo Aquino. Dirijo minha atenção à experiência sensorial que desperta. O artista ocupou-se, generosamente, de alertar-nos sobre o abalo sensório que se mobiliza ante suas telas. Para tanto, fez palestras, editou livros, solicitou que outros artistas se ocupassem de avisar aos observadores.

Sua charla, dezembro 2019, inicia-se socraticamente: “o que significa pintar, no momento atual? O que significa o “novo” em contraponto ao que já se fazia e que não era necessariamente antigo ou superado? O que dizem as palavras “revolução” ou “revolta”?, em alusão a Octavio Paz; o aparentemente novo, hoje, poderia ser renúncia, cansaço, frivolidade? Ou redundância, ou plágio, repetição, trapaça, mera provocação, não-arte?”
Veneno letal inoculado na veia da vida da arte – assim Alfredo Aquino nos situa – numa espécie de libelo a valores artísticos consagrados e um não a ódio, a ideologias espúrias, à falta de talento. A busca do inédito, do criativo através da investigação no trabalho artístico, da pacienciosa busca, busca do norte (do Sul) da arte. Eis a “revolução” no sentido do poeta Paz, por aqui nos conduz Alfredo Aquino. É posição frontal, aberta, luminosa de rechaço a experiências que levam a não mais que o impensado com o propósito do choque, do inaudito, do vexatório, da surpresa pela surpresa.
Assim como prudência e equilíbrio são ousadias que facilmente passam desapercebidas, defender o conceito de beleza é, nestes tempos, igualmente ousado. Desse modo nos leva Alfredo Aquino ao lugar de liberdade para a criação na arte, ao reconhecimento e valorização do exigente, e fisicamente extenuante, que é pintar, ao compromisso emocional do autor sintonizado com seu trabalho, como Picasso no “Guernica”, Ianelli nas “Vibrações”, ou Bez Batti nas esculturas.
Por certo que beleza não significa estética apaziguada, ou arte-bombom, ironizada há anos por Pablo Bobbio, como arte reduzida a objeto decorativo.
Desta forma Aquino esboça o que trazem as 32 telas, onde as tratou de forma intensamente autoral, distante de alusões à realidade, ou de narrativas visuais, ou ainda de fazer aflorar o choque, ao agrado da mídia, ou de usar substâncias estranhas ao universo do pintor. “Não se pretende como estampido”. Aqui se valoriza o silêncio do pensamento enlaçado ao gesto de pintar, imagens não mais que sugeridas e – marcante – o desenvolvimento das cores. Cores alcançadas pelo uso criativo dos pigmentos, o alcance de transparências, espaços translúcidos, tonalidades inesperadas, distantes da cor “uma e crua”, conseguida, então, nos diálogos entre os pigmentos, nos gestos próprios do pintor e – desígnio final – o endereçamento da obra ao observador da pintura.
Vórtex. O impacto desencadeado pelos trabalhos de Alfredo Aquino, trouxeram-me grata cena vivida, há bons anos, no MoMA, quando, ao subir um segundo lance de escada, deparei-me, sem prévio aviso, com uma tela monumental de Antoni Tàpies, cujo choque de visão me fez retroceder, sem poder respirar, vários degraus. Impacto de igual força experimentei ante as telas de agora. Sobretudo os azuis. Os azuis abissais de Alfredo Aquino. Numericamente as telas azuis são maioria e a mais sensorialmente vibrante é a que, no livro do artista, Seulement Peinture, ardotempo, 2020, se encontra na página 46. Os azuis em tonalidades muito escuras dominam a parte central da tela e te atraem para dentro do abismo, necessitando-se empenho, concentração, para que se possa tomar distância, respirar, caminhar, buscar outras telas. Apreciação prolongada – e que requer disciplina – te permitirá perceber que a mancha do abismo azul abre-se centralmente, para um azul ainda escuro, mas agora luminoso, que numa vertigem evoca algo do torso humano, imagem que logo se esfuma e, nas zonas laterais, vê-se superposição que se multiplica, uma construção, de suaves faixas azuis índigo, com nebulosidades quase esbranquiçadas. Inefável.
Já na obra “25 Cartões Postais”, de 1995, portal de entrada a seu privado ciano-universo, Alfredo Aquino abre-se aos azuis em dois deles, mas é em Casal idealizado pelo poeta onde o artista demonstra um primeiro toque no abissal da cor. Vinte e cinco anos depois, dá-se, agora, a total imersão no abismo. Como acesso aos cartões de 95, Ignácio Loyola Brandão, amigo do autor, também em clima socrático, indaga sobre a indagação pictórica de Aquino: “onde estão os rostos da Humanidade? ...ao olhar os quadros nos perturbamos com a quase total ausência de rostos. Ou melhor, os rostos existem, mas não os traços que definem olhos, boca... acabamos transformados em um povo sem olhos – e como é possível adivinhar a alma, se os olhos inexistem?”, pergunta-nos, perplexo, Loyola.
Em 2008, passados quinze anos, Alfredo Aquino radicaliza sua navegação de abismos ao lançar o romance Carassotaque. Na porta de acesso posiciona-se agora Aldyr Garcia Schlee, outro amigo do autor, que sublinha neste livro o uso do “espelhismo”, um bom recurso para o alegórico conteúdo: multidões sem rosto e sem cabeça, uma passagem à desidentidade, à despersonalização, “ele nos coloca diante de imagens em que nos vemos, envolve-nos em situações que nos comprometem, remete-nos a um incrível mundo em que acabamos por acreditar – embora não nos vejamos nele’’, completa Schlee. A viagem se espelha na letra de uma canção popular do país longínquo aonde Aquino nos conduz: “esse povo, mesmo sem-cabeça, sabe o que faz, mostra bem quem é...”
A consciência crítica da polis na obra de Aquino é arrebatadora, faça-o com tintas ou com palavras. Isso nos leva a ‘O prazer do texto’, 1973, de Roland Barthes, onde observa que “a fruição do texto não é precária, é pior: precoce [itálicos de Barthes]; não surge no devido tempo, não depende de nenhum amadurecimento. Tudo é arrebatado numa só vez. Este arrebatamento é evidente na pintura, a que se faz hoje... o texto [eu acrescento a pintura] é (deveria ser) essa pessoa desenvolta que mostra o traseiro ao Pai Político” (itálicos de Barthes). Compartilho a ideia do francês ao registrar o vórtice na obra do brasileiro. Barthes completa, pág. 69: “imaginar uma estética (se o termo não estiver por demais depreciado) baseada até o fim (completa, radicalmente, em todos os sentidos) no prazer do consumidor (itálicos de Barthes), qualquer que ele seja, qualquer que seja a classe, qualquer que seja o grupo ao qual pertença, sem acepção de culturas e linguagens: as consequências seriam enormes, talvez mesmo dilacerantes”. Este elemento mais, decisivo, demarcador de fronteiras, o compromisso vincular com o observador, está presente nas palavras de Aquino, “...pintura e endereçada aos observadores dessa pintura”.
O prazer da pintura – de quem faz, de quem olha, observa, consome – presente em Alfredo Aquino, passa, no observador, pelo arrebato, a inquietação, o desassossego, o abismar-se ante a obra, contendo um duplo e simultâneo sentido, um, movido pelo senso estético, outro, pelo abalo do sensório.
Um sismo diante de “Apenas Pintura”. 

* Autor: Paulo Rosa é psicanalista, pediatra e autor de "Andar Térreo".

 


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895