As Faces do Estilo de Nelson

As Faces do Estilo de Nelson

Diretor e produtor teatral Caco Coelho lança livro “Dossiê Rodrigues – a genealogia (1900-1934)” na próxima segunda, no Centro Cultural da Ufrgs

Correio do Povo

Nelson Rodrigues é objeto de livro de pesquisa minucioso pelo diretor, produtor e escritor Caco Coelho

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"... dar-se-á completa reviravolta nos mundos desorbitados, a cadeira mágica o fará viajar a toda velocidade no tempo e no espaço, e, no momento de abrir as pálpebras, pensará que está deitado alguns meses antes, em uma terra distante".

Marcel Proust

Alaíde, personagem de Vestido de Noiva, está se vestindo para o seu casamento com Pedro. Lúcia, a irmã apaixonada pelo mesmo homem, ardilosamente organizou tudo para ficar sozinha com Alaíde nos instantes finais da preparação da noiva. Lúcia, então, revela o seu amor incompatível. Elas têm uma discussão fatal. Alaíde sai de casa correndo. É atropelada por um automóvel em balada louca, que acabou de passar pelos arcos da Lapa e foi achar o corpo da jovem na Glória. Ela entra em coma profundo. É quando mergulha na sua recordação. Alaíde não se lembra das coisas que aconteceram, mas a recordação está presente. Recordar-se não é de modo algum o mesmo que se lembrar; não são as mesmas coisas e loisas. “A memória de Alaíde está em franca desagregação. Imagens do passado e do presente se confundem e se sobrepõem. As recordações deixam de ter ordem cronológica. Apaga-se o plano da memória.” Em coma, Alaíde vê uma explosão de imagens de um passado longínquo ressoar em ecos e já não sabe em que profundezas esses ecos vão repercutir e morrer. O baú de Madame Clessi foi aberto. Ele está no sótão da casa. Nesse canto do mundo, o ser abrigado sensibiliza os limites do seu abrigo. Alaíde reanima, com sua exuberância, as profundezas do ser. São os baixos da antropofagia.

Essa reação detona a gama de emoções que o poeta, no limiar do ser, transborda. A poesia está em estado de emergência. O poeta não nos mostra a cronologia de sua imagem, mas ela se enraíza em nós. A comunicação de uma imagem singular é um fato de grande significação ontológica. Deus é toda a gente. A imagem poética emerge da consciência do poeta como um produto direto do coração. Em sua expressão, é uma linguagem criança. A casa mantém a infância imóvel em seus braços. O espaço mantém o tempo comprimido. A casa, guarida do devaneio, protege o sonhador e permite sonhar. São esses valores de sonho que se comunicam poeticamente de alma para alma, de um nervo para outro nervo, de uma sensação para outra sensação, da crispação de uma dor a outra dor.

O que interessa não é uma verdade universal. Existe uma grande diferença entre ir do universal em direção ao particular e mover-se do particular em direção ao universal. A poesia quer, sim, ela exige concentração. A confissão particular, olhar pelo buraco da fechadura as pequenas histórias com toda a liberdade, sem culpa e com lupa. Ele não está em um confessionário onde receberá “pais-nossos” para expiar a culpa. Trata-se de perfurar buracos na linguagem para ver e ouvir o que está escondido atrás e entregar ao outro como se fosse um fogo sagrado conduzido por Prometeu. As correntes estão rompidas. É uma afronta aos Deuses do Olimpo. Nesse momento, o poeta viaja sobre o perfume, como a alma de outros homens sur le musique.

É o delírio que inventa essas visões, essas audições que formam as figuras de uma história e de uma geografia, incessantemente, reinventadas como um processo que arranca as palavras de um extremo a outro do universo.

São acontecimentos que ocorrem na fronteira da linguagem. O limite não está fora da linguagem: ele é o seu fora. Porém, se o delírio recai no estado clínico, as palavras nada mais desembocam. A neurose é o negativo da perversão e a doença não é o processo, mas a parada do processo. Então, a expressão aparece como um empreendimento de saúde. A literatura é uma saúde. Não há saída fora da Arte.

Escrever é um caso de devir. O poeta vai substituir as palavras e as expressões gastas. Na fabulação de suas hipóteses, vai transcender o real, como o quer Borges. Ideias vão se organizando no delírio do sonho, na semivigília, no êxtase ou na epilepsia, inspira Dostoiévski. Incursões nos terrenos arcaicos da raça humana, resgatando a unidade perdida. Escrever, como a própria vida, é uma viagem de descobrimento. O artista não cria como vive, mas vive como cria, enleva Lescure. Afinal, “o que pode haver de mais belo que um caminho?”, pergunta George Sand.

O caminho percorrido vai ser o fator mais relevante em relação à carreira de Nelson Rodrigues. A cada movimento seu, a cada vez que mudou o ambiente e o lugar onde trabalhava, seu estilo se inspira na nova empreitada. Essa capacidade de se adaptar aos novos desafios, de encontrar o canal de comunicação a cada recolocação, parece ter sido a grande aliada da sua eficácia. Sua linguagem soube se aprofundar em cada época, a cada momento, garantindo a eternidade da obra. Mas não se trata de sujeitar-se. Nesse caso, o estilo que é encontrado resulta em um instrumento capaz de comunicar-se com eficiência em quaisquer que sejam as moradas. Me deem uma fórmula e vejam o que eu faço com ela, dizia Brecht. O relevante não é a história, mas como se conta, completa Genet. O aspecto predominante é a liberdade de que Nelson soube se apropriar em cada etapa. Paradoxalmente, ao lado da sua recepção, e favorecido por ela, estava colocando, em todos os momentos, a sua visão de dissonância com a realidade. A permanente busca de uma linguagem que o comunicasse não o diminui, ao contrário, torna-o mais próximo do seu leitor, espectador, público, seja qual for a mídia, para tornar mais contundente o que tinha a dizer. Ele foi um dos autores mais censurados em toda a história brasileira.

A forma como esse homem vê o mundo, sua maneira de pensar a realidade, muitas vezes, uma realidade que está em desacordo, se evidencia, se mostra por meio da linguagem.

É no jornal que a linguagem rodriguiana será construída, tudo o mais, inclusive o teatro, resultará desse veículo.

O ambiente familiar, desde cedo, identificou o jornal como uma extensão de sua casa. É ali, neste lugar de comando, onde as coisas começam. É na residência dos arcontes, que nomeiam os arcos da memória, que se dá a passagem do privado ao público. É nessa morada, onde se demoram, que os Rodrigues vão desenvolver a sua maior contribuição às artes: a criação de uma linguagem genuinamente brasileira. Tal linguagem tem o poder da consignação e está umbilicalmente relacionada ao lugar onde foi produzida e à sua ancestralidade. Existimos na linguagem, diz Maturana.

Agora, o percurso da obra. Boa viagem...

* Trecho de “Dossiê Rodrigues - a genealogia (1900-1934)”


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895