Atelier V744 como espaço de arte e reflexões

Atelier V744 como espaço de arte e reflexões

Espaço inaugurado em 18 de setembro de 2021 é objeto de artigo da pesquisadora e professora no programa de PPG em Artes Visuais da Ufrgs, Niura Legromonte

Correio do Povo

Helena Martins Costa, residente em São Paulo, para “Desvio/Provas” se apropriou de arquivos fotográficos com imagens de corpos que, ao serem enquadrados pela câmera, ficavam inclinados em relação ao espaço que ocupavam

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O Atelier V744, inaugurado em 18 de setembro de 2021, tem muito a comemorar neste 2023, ao completar dois anos de existência. Mesmo sendo jovem, esse espaço já realizou diversas exposições de arte contemporânea com artistas do Rio Grande do Sul, de São Paulo e do Recife. Pode-se dizer que foi uma atitude corajosa da artista Vilma Sonaglio, ao abrir um espaço em meio ao momento pandêmico. Felizmente, continua bem vivo e com muitos projetos futuros. O nome do Atelier reforça a identidade da Vilma, tanto na inicial de seu nome, como no número da Rua Visconde do Rio Branco, em Porto Alegre, também sua residência. O espaço nasceu, como disse Sonaglio, “de uma vontade em estabelecer interlocuções com outros(as) artistas”.

No piso térreo, o corredor que dá acesso à casa, de imediato, funciona como convite para as intervenções artísticas, que também ocorrem na sala grande, na outra sala de realizações de cursos e em um espaço externo, uma área coberta e um pátio com um jardim de plantas, onde ocorrem as confraternizações nas aberturas das exposições.

Para expor no espaço artistas com trajetórias consistentes – alguns já professores(as) – são convidados(as), durante dois meses, período no qual são realizados encontros com artistas e divulgações de textos em jornais. No período de dois anos, o espaço abrigou dez exposições: “ViCeVeRSa...pode não ser o que é”, de Vilma Sonaglio; “Paisagem sem Volta”, de André Venzon e Igor Sperotto; “Beabá”, de Maria Paula Recena e Marcos Sari; “C+asa”, de Marcelo Silveira; “Tripadeiras”, de Téti Waldraff; “Desvio/Provas”, de Helena Martins Costa; “Sem Peso e Cem Medidas”, de José Spaniol; “Desenhos Miméticos”, de Richard John; “Curso”, de Jailton Moreira e “Lugares que ainda não visitei”, de Patrícia Bohrer. As exposições já realizadas contemplaram as mais diferentes linguagens: fotografias, desenhos, pinturas, objetos, esculturas, vídeos, instalações e performances musicais.

As exposições contam com processos colaborativos, pois os textos são escritos por teóricos e/ou artistas convidados por quem está expondo. Já contribuíram com reflexões: Alexandre dos Santos, Ana Flávia Baldisserotto, Eduardo Nasi, Eduardo Veras, Eduardo Vieira da Cunha, Elaine Tedesco, Gabriela Motta, Hélio Fervenza, Nicolas Beidacki, Niura A. Legramante Ribeiro e Paula Ramos. Destaca-se, também, como atividade já realizada no Atelier, a noite de autógrafos do livro Furos no futuro: psicanálise e utopia, de Edson Sousa.

É muito significativo que Sonaglio tenha inaugurado o espaço com exposição de seus trabalhos, o que, simbolicamente, pode ser visto como uma carte-de-visite oferecida ao público – esta, historicamente, utilizada como apresentação nas interações sociais. De título enigmático, “ViCeVeRSa...pode não ser o que é” apresentou três séries de suas fotografias, a maioria em preto e branco, constituídas por Hoje, Sopro e Transbordo, obras que não se entregam ao primeiro olhar como tautologias, mas são vestígios de linhas e de pontos luminosos, estes originados de situações cotidianas do isolamento social na pandemia, onde a resiliência era a única opção.

Cabe ressaltar que em dois anos de atuação, o espaço oportunizou a revisitação de obras de importantes artistas residentes em outros estados que há muito tempo não expunham em Porto Alegre. Marcelo Silveira, que veio do Recife, resgatou para a exposição “C+asa” as sobras das antigas esquadrias arquitetônicas da casa que abriga o Atelier V744, esta datada dos anos de 1960, após uma residência artística no local. Com a ideia de site specificy, revitalizou a memória do espaço, entrelaçando passado e presente; José Spaniol, residente em São Paulo, explorou questões como a suspensão, o equilíbrio, a sustentação, o espelhamento, a força, o peso versus contrapeso de objetos submetidos a contenções da gravidade que foram os alicerces da exposição “Sem Peso & Cem Medidas”; Helena Martins Costa, também residente em São Paulo, para “Desvio/Provas” se apropriou de arquivos fotográficos com imagens de corpos que, ao serem enquadrados pela câmera, ficavam inclinados em relação ao espaço que ocupavam, o que provoca estranhamentos ao nosso olhar desabituado com ângulos inusitados. É um tributo a outras formas do ver.

Entre as problemáticas das obras apresentadas por artistas atuantes em Porto Alegre, também se verificou o interesse por questões do espaço, como em “Paisagem sem Volta”, exposição que reuniu obras de André Venzon e de Igor Sperotto. Ambos referenciam a cidade, Venzon com o já característico rosa de sua poética, nos tapumes que encobrem locais de reformas, nas paredes, nos objetos em roupas; e Igor Sperotto, que mostra deslocamentos semânticos nas fotografias de fachadas com letreiros de hotéis no Brasil, os não-lugares, como diria o autor Marc Augé, que possuem nome nomes de outras cidades ou países do exterior, como Hotel Roma, Hotel Milão, Hotel San Francisco e Hotel Uruguai; a poética de um jardim foi a referência para a exposição “Tripadeiras”, de Teti Waldraff, um local afetivo para artista. Linhas e cores de plantas se entrelaçam com vivacidade em superfícies bidimensionais e em estruturas coloridas que se agarram à parede. Esses relevos no espaço bem poderiam ser um atributo simbólico do crescimento das plantas; anotações de vivências de um cotidiano ganharam formas e cores em “Lugares que ainda não visitei”, de Patricia Bohrer. Fragmentos de tempos, de espaços e de sensações são as suas memórias de afetos que a artista compartilha com o público; “Beabá”, de Maria Paula Recena e Marcos Sari, trouxe as linguagens das letras e das vocalizações e fez rememorar o mundo infantil das primeiras aprendizagens para a comunicação oral e da escrita; não muito longe do universo das crianças que foram estimuladas a copiarem e pintarem imagens prontas, como os cadernos para colorir, está a referência para “Desenhos Miméticos”, de Richard John, que problematizou a relação entre modelos e cópias, original e reprodução. Outros trabalhos reproduzem nomes separados de sobrenomes e acumulados em letras de pequenos formatos que, a certa distância, viram manchas e dificultam o reconhecimento das identidades; por fim, a exposição “Curso”, de Jailton Moreira, explorou os clipes da internet que foram rearranjados para formar narrativas iconoclastas.

O Atelier V744 representa um espaço para convivências com poéticas que estimulam olhares e imaginações, para reverberações de ideias entre artistas e públicos que fomentam debates saudáveis e para guardar memórias de imagens, de reflexões textuais e de sonoridades.

Vida longa ao Atelier V744.

*Niura Aparecida Legramante Ribeiro é pesquisadora e professora no programa de Pós-graduação em Artes Visuais no Instituto de Artes da Ufrgs (PPGAV/DAV/Ufrgs)


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DESDE 1º DE OUTUBRO 1895