Da crítica implacável ao rumo de si mesmo

Da crítica implacável ao rumo de si mesmo

Celso Gutfriend *

Escritor Paulo Bentancur em sessão de autógrafos na Feira do Livro de Canoas

publicidade

Lembro do dia em que conheci, pessoalmente, o Paulo Bentancur. Foi no final de 1987. Já o conhecia como leitor de seus artigos de crítica literária, e os admirava. Era um verdadeiro discípulo de Paulo Hecker Filho, conciliando a erudição alimentada por uma vida dedicada à leitura, com uma honestidade intelectual, rara em nosso meio, mas não isenta de efeitos colaterais. Jovem ainda, já colecionava desafetos de muita gente batuta. 

O motivo de minha ida ao seu encontro foi ter o meu primeiro livro de poemas indicado para a editora tchê!, capitaneada pelo hoje escritor Airton Ortiz. A sua linha editorial de frente era dirigida nada menos do que por Edgardo Xavier. E Paulo Bentancur. Eu havia sido encaminhado pelo poeta Mário Pirata, que tinha interessado à editora. Carece dizer que, no final dos anos oitenta, editar livro de poesia era ainda mais difícil. Bentancur fez mais do que isso: editou três, acrescentando aos meus e do Mário um do Ricardo Silvestrin. Um verdadeiro tour de force poético, perpetrado por editores amalucados, em meio à paixão que nutriam pelo que não ocupava espaço mais amplo no mercado. 

Falando nele, o mercado, o Paulo dos textos era, ao vivo, um jovem franzino, que enfrentava dificuldades econômicas para sustentar uma vida literária, ou seja, dedicada a ler e escrever. Escrevia para os principais jornais do RS e do Brasil e, tempos depois, ocupou outros espaços importantes de editoria (grupo Record, por exemplo), conciliando, aos trancos e barrancos, a paixão pelo que considerava valioso literariamente e o que poderia vender. Também foi Coordenador do Livro na Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre.
Desde aquele primeiro livro, tornamo-nos grandes amigos e parceiros literários. Editou também os meus infantis, do começo, em outra empreitada dessas em que garimpava algum talento sem se preocupar com o dinheiro, angariando reações ambivalentes de seus patrões: sim, ele podia ser o melhor, mas era preciso cuidar com as suas escolhas, em um mundo cada vez mais propenso ao fácil e ao que não fizesse pensar. 

Ir ao seu apartamento, no bairro Cristo Redentor, era um regozijo: o JK continha a segunda maior biblioteca que eu tinha visto até então (a primeira era a do Paulo Hecker), onde mal se via a cama ou os utensílios domésticos. Confesso que a minha memória nem encontra algum leito. Paulo dormia entre os livros, de que se desfazia com enorme facilidade, pelo puro prazer de compartilhar com os amigos. Mas era sair um volume que entravam dois, em troca de tudo o que ganhava com o seu trabalho. 


MENTOR. De certa forma, foi também um mentor para leituras, e uma lista do que me passou extrapolaria o espaço do jornal. Às vezes, não parecia deste mundo, esquecia-se da hora marcada, não comparecia ao encontro, sempre embrenhado em algum texto. Eu o desculpava; afinal, o seu mundo da lua era buscar as palavras, aqui na terra. Com a arte posta acima da vida, a literatura correndo pelo sangue, não deixava de ser generoso, fazendo sempre questão de pagar o prato do dia, na Assis Brasil. Quanto aos assuntos do dia, lá estavam a filha Maria (o neto Hugo ainda não havia entrado na história), depois a filha Laura. 

E textos. Textos, textos, textos. Apresentações, orelhas, prefácios, artigos, resenhas para os suplementos culturais. Daí a chegar aos seus, de prosa ou poesia, foi um parto, que, como amigo, acompanhei. Quem já lia os manuscritos sabia que ali estava um grande escritor, mas o seu supereu de crítico leitor ultra exigente era por demais ferino para aceitar que pudesse, ele mesmo, ser o alvo de um controle literário da mais alta qualidade. 

Mas não se estanca um impulso para a escrita, sobretudo, quando é verdadeiro (Rilke) e, uma hora, aceitou que pudesse ser apenas ele mesmo. A porteira se abriu. Não vou mencionar a carrada de prêmios importantes e as dezenas de obras que nos ofereceu, com a humildade de quem nunca deixou de sofrer a própria crítica. Publicou em vários gêneros e, no meu panteão pessoal estão, na poesia, o premiado “Bodas de Osso” (Bertrand Brasil), em que retira de uma infância dura e muito triste a expressão poética maior e redentora; em prosa, Instruções para iludir relógios (Artes e ofícios), uma obra-prima que, no fundo, mescla vários gêneros, sob uma forma rigorosa, no cenário de um condomínio de apartamentos. E o infantil “A máquina de brincar” (Bertrand Brasil), que acerta no miolo da parte essencial de uma infância. 

O grande amigo Paulo Bentancur faleceu precocemente, há exatos seis anos, mas é figura cativa nos meus sonhos. Em um deles, elogiou a perfeição de um ‘a la minuta’, perto do hospital Cristo Redentor, e o “Rayuela”, do Cortázar. Na cena seguinte, foi firme e terno, ao dizer que precisávamos continuar tentando nos esmerar em nossas formas literárias, pois a vida era fugaz. Quanto a mim, nesta hora onírica da verdade, limitei-me a expressar uma saudade de todo indizível e nada criticável.

* Psiquiatra, psicanalista, escritor, autor de "A nova infância em análise" (Artmed), entre outros


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895