Dante Alighieri e a poesia moderna

Dante Alighieri e a poesia moderna

J.H. Dacanal

Estátua do poeta e filósofo Dante Alighieri na sua natal Florença, na região da Toscana, Itália

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Foi lá pelo final de 1970. Bolsista do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico, em uma cidadezinha às margens do Reno, não muito distante de Colônia, eu cursava o Goethe Institut, para, digamos, aprimorar meu alemão coloquial. E com o mesmo objetivo ali se encontravam também estudantes de vários países.
Certa noite, em um bar, lá estávamos nós, um grupo de colegas, entre os quais uma jovem professora italiana, de Roma, salvo engano. Em determinado momento, sabe-se lá por que – possivelmente para exibir-me –, comecei a recitar a Oração de São Bernardo (Paraíso 33,1-39), que, à época, eu sabia quase toda de cor.
A colega me olhava, perplexa. E quando terminei, exclamou:
- Ma che! Un brasiliano che recita Dante!
Então expliquei a ela que, por ser neto de imigrantes, o italiano se tornara praticamente minha segunda língua materna, estudara em seminários, cursara Letras etc.
Mas o que tem a ver Dante com a “poesia moderna”? Bem, troca o disco! Ou, mais adequado ainda, vira a chapa, como se dizia no meu tempo... E vamos por partes.
Um ano depois...
Sim, um ano depois eu estava de volta à redação do Correio do Povo, que publicara algumas reportagens minhas sobre política e literatura europeias. E o Caderno de Sábado, idealizado poucos anos antes por P. F. Gastal e Osvaldo Goidanich, se transformara no suplemento literário, como se dizia à época, mais importante do país – depois daquele do Estadão. Assíduo colaborador dele, eu me tornara relativamente conhecido no meio editorial-literário da província. O que trazia algumas vantagens, é claro, mas acarretava também desvantagens. Explico.
Naquela época, as páginas e os suplementos literários dos jornais eram praticamente os únicos meios – ou mídias, como se diria hoje – à disposição de autores e editores para a divulgação de seus produtos. E os lobbies, formais e informais, hoje atuantes – alguns dos quais nem podem ser nominados, sob pena de processo – simplesmente não existiam. Exceto o comunista/esquerdista, que parece eterno... E o pessoal, é claro. É este que interessa aqui.
Oito línguas e um dialeto ...
Bastante exposto, como foi dito, eu era um alvo óbvio de editores e autores. Destes últimos, havia dois particularmente insistentes. Um deles, conhecido ficcionista, era pouco discreto e duas ou três vezes chegou a colocar-me em situações constrangedoras. O outro, tão conhecido e insistente quanto aquele, era poeta. Bem falante e afável, ia à redação entregar-me seus livros. Certo dia, meio a sério, meio a brincar, não resisti:
- Olha, X, com alguma dificuldade, eu consigo entender oito línguas e um dialeto.1 Mas não entendo muitos de seus poemas. Deve haver algum problema comigo ou com o sr.
Ele falou algo sobre “poesia moderna”, mas não se ofendeu e até achou engraçado. E continuou a me oferecer, religiosamente, suas obras...
Ocorre que em uma delas havia um poema, digamos, inteligível e de fato interessante. E – finalmente! – acabei escrevendo um breve artigo dizendo que eu continuava não entendendo a tal de “poesia moderna” mas que naquela obra havia alguns poemas promissores etc.
Na segunda-feira à tarde, quando entro na redação, o dr Paulo de Gouveia, diretor de redação e poeta, levantou-se de sua mesa e, brandindo o Caderno de Sábado em sua mão direita, começou a falar, em voz alta, para que todos ouvissem:
- Aqui está! Finalmente alguém diz o que eu penso! Parabéns, rapaz! Eu também não entendo essa tal de “poesia moderna” ...
Sete séculos depois ...
Neste ano em que se completam setecentos anos da morte de Dante me voltaram à mente estes episódios.
Pois é, sete séculos depois, a Divina Comédia continua sendo lida e estudada. Mais do que isto: decorada e recitada. Particularmente suas passagens líricas, como as denominam os especialistas. Aquelas em que estão ausentes as referências histórico-políticas e a complexidade dos temas teológico-filosóficos. Por quê?
Porque nestas passagens a simplicidade vocabular, a concisão estilística e a clareza conceitual estão a serviço da absoluta inteligibilidade do texto e da perenidade do tema, que são a inamovível rocha sobre a qual se construiu toda a grande lírica ocidental. De Safo e Píndaro a Goethe e Hoelderlin, de Horácio a Leopardi, de Donne a Fernando Pessoa, de Ronsard a Quintana... E de tantos outros.
Por isto Dante, sim, é e será verdadeira e eternamente moderno, enquanto a natureza humana continuar a mesma... Porque qualquer pessoa que conheça a língua italiana entende grande parte de sua “Divina Commedia”. Pois no dialeto toscano de Dante está materializada a primeira língua neolatina perfeitamente articulada – muito antes do francês, do espanhol e do português.
Quanto ao mais, como ele diz,
Vien dietro a me
e lascia dir le genti:
Sta comme torre ferma
che non crolla
Già mai la cima
per soffiar de’ venti.2
(Purgatorio 5,13-15)
1. O vêneto. Como disse um linguista, “um dialeto é uma língua sem um exército por trás.” Ou vice-versa.
2. Vem, me segue,
E deixa falar o vulgo:
Mantém-te qual torre firme
Cujo cimo jamais se abala
Pelo soprar dos ventos.

 

* Jornalista, professor e ensaísta. Doutor em Litertura Brasileira pela Ufrgs. 

 


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DESDE 1º DE OUTUBRO 1895