Dez anos sem Millôr Fernandes

Dez anos sem Millôr Fernandes

Escritor foi figura ímpar no panorama das artes brasileiras

Breno Serafini *

Millôr Fernandes morreu em 27 de março de 2012 em sua casa no bairro de Ipanema, no Rio de Janeiro

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Há dez anos, em 27 de março de 2012, o Brasil perdia um ícone! Millôr Fernandes foi figura ímpar no panorama das artes brasileiras, um multiartista que, por diferentes caminhos, sempre buscou a verdade, na esperança de dela se aproximar, por mais que fugidia e inalcançável. E seu trabalho na imprensa se deu no limiar entre grafia e ilustração, deixando sua marca também em outras esferas, como na tradução, na pintura, no texto dramático, na televisão, etc. 

Humanista desde sempre, provocativo e instigante, sempre mirou o homem em sua dimensão universal, Ipanema ao fundo, fazendo uma reflexão sobre todas as formas de poder, do micro ao macro. E a ausência desse pensador gera um vácuo que muito dificilmente seria ocupado por alguém, e não o foi. Ficamos mais pobres em inteligência, o Brasil ficou menor – e a ausência do menino autodidata que adotou “a paz da descrença” como filosofia de vida se faz sentir, principalmente porque ninguém como ele conseguiu, em todo o seu percurso, ligar irreverência, questionamento e coerência. 

A título de ilustração, famoso foi o seu discurso em Passo Fundo, convidado para um evento de escritores no período mais negro da ditadura, quando, aplaudido de pé por suas palavras em prol da liberdade, confessou ter acabado de ler um fragmento do discurso de posse do General Médici.

Pai do jornalismo alternativo brasileiro, Millôr não se furtou a questionar nenhum matiz ideológico: desde as crônicas de resistência n’O Pasquim, ao alvorecer da abertura política, e mesmo da democracia formal atual, sempre se pautou pela isenção de, numa sociedade corrupta, “recusar-se aos 10% a que teria direito”. Para ele, que se dizia jornalista acima de tudo, “imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados”. Dessa forma, sempre questionou aquilo que a alguns era natural, desde o autoritarismo reinante até os esquerdistas com suas bolsas-ditadura. Ciente de que “a mala nada na lama”, não importando se lido à gauche ou à droite, incomodou a muitos com sua coerência. 

Mas o verdadeiro guerreiro se mostra no calor da batalha: mesmo em tempos ditos democráticos, Millôr comprou muitas brigas: em 1982, por exemplo, saiu da revista Veja, depois de uma longa colaboração, por ter sido admoestado a não fazer campanha para Brizola na primeira eleição pós-ditadura. 

Depois disso, atuou nas revistas Istoé e Istoé/Senhor, assim como no Jornal do Brasil e em vários jornais do centro do país. Em 2000, criou o site Millôr On-line, sendo um dos primeiros a utilizar o computador como um recurso de criação, desde 1986, abandonando a máquina de escrever – um pioneirismo à época.

Polemista por natureza, enfureceu as feministas, dentre outras críticas, ao declarar, no embalo de Garota de Ipanema, de Vinícius e Tom, que “o melhor movimento feminino ainda é o dos quadris”. A partir de 2004, voltou à Veja, relação que durou até 2009, quando questionou, na Justiça, o uso das suas páginas (na primeira fase) na versão eletrônica da Revista patrocinada por um banco, no que obteve ganho de causa.

Ainda entre amigos, polemizou com Ziraldo, que havia requisitado indenização pela perseguição na ditadura, já que, segundo ele, “nenhum idealista deveria lucrar com seu ideal”. Polemizou ainda com Aldo Rebelo, sendo processado por ele, por ter criticado a lei do deputado que propunha a regulação da gramática, restringindo o uso de estrangeirismos. Segundo Millôr, a proposta era idioletantismo, ou seja, um dialeto particular. Segundo Aldo, estava sendo chamado de idiota, o que gerou a resposta de Millôr: “estava, mas ele não podia provar”.

Ainda no campo da língua, mas mais simbólico de todos, talvez tenha sido o acontecido na década de 60, quando o editor da revista O Cruzeiro, tentando lhe facilitar as coisas, afirmou que teria liberdade total no seu espaço, obtendo a seguinte resposta do escritor: “você vai me perdoar, mas ninguém pode me dar liberdade. Pode tirar, mas dar, não pode”.

Dessa forma, a defesa ferrenha da integridade de seu espaço criativo foi, desde sempre, a sua a maior batalha — ou mesmo a própria guerra. E nesses embates, Millôr conseguiu, através do humor e da ironia, testemunhar o seu tempo resguardado pela (auto)crítica mordaz. No conjunto de sua obra, encontramos uma desconstrução proposital do discurso sério, escudado pela crítica do riso e do ceticismo, expondo a ambivalência não só da cultura brasileira, mas do próprio homem universal.

Um dos maiores pensadores brasileiros e um dos de maior inserção na vida nacional, Millôr Fernandes era um frasista que perdia o amigo, mas não a ética, que sabia que a liberdade individual se sobrepunha a qualquer ideologia ou ao governo de plantão e que fazia do humor “a quintessência da seriedade”, construindo com ele uma crítica visceral ao homem de seu tempo.

E hoje, transformado em estátua que assiste todo dia ao pôr de sol de Ipanema, do Arpoador, ao pensar a sociedade brasileira, o jornalista Millôr certamente reafirmaria: “O Brasil tem um enorme passado pela frente”.

* Escritor. Doutor em Letras pela Ufrgs.  


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895