Dom Pedro II, um Cavaleiro Andante

Dom Pedro II, um Cavaleiro Andante

Alcy Cheuiche *

"Neste momento, enquanto seus olhos ainda não conseguem desvendar a paisagem, Dom Pedro II, que cavalga logo após os soldados, preocupa-se mais em adaptar-se com a marcha em passos curtos de sua montaria..."

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O homem alto e pesado apoia o pé esquerdo no estribo de prata e monta com agilidade. Acomoda-se na sela, enquanto o palafreneiro coloca seu pé direito no outro estribo. Estarão do comprimento ideal? Muito curtos, só para o manège, o trote inglês e outros exercícios hípicos de breve duração. Muito longos, virão as dores no costureiro, este nervo maldito que já me deixou com as pernas fora de combate. Pensa nisso, enquanto seus olhos, por sobre as orelhas do cavalo, buscam os primeiros clarões da madrugada. Cavalo, não. Uma égua branca escolhida pelas qualidades que Alá conferiu à raça Árabe, como reza a lenda, ao soprar o vento Simum na areia e oferecer esse magnífico animal ao ser humano: A virilidade do homem, com a beleza e elegância da mulher. 

- C’est bien comme ça, Majesté ?
- C’est parfait, merci.


Sim, está tudo bem, tudo como planejei lá no Rio de Janeiro, durante os últimos cinco anos, debruçado num mapa maior do que a minha mesa. Mas vou pedir que ele fale comigo em árabe e não em francês. Depois daquela viagem ao Egito, em 1871, tenho trabalhado muito essa língua e até me atrevi, em segredo, a traduzir alguns contos das “Mil e uma noites”. Aliás, é dentro de um deles que pareço estar, neste momento.

Dezenas de homens com turbantes e longas vestes movem-se como vaga-lumes, portando lâmpadas de azeite, algumas certamente do mesmo feitio do tempo de Aladim. É impressionante. Mil anos depois do reinado do Califa Haroun Al Rashid, parece que muito pouco mudou por aqui. É claro que Beirute, A cidade das fontes, no idioma fenício, teve altos e baixos, atingindo seu cume cultural quando ocupada pelos romanos, pouco antes do nascimento de Cristo e até a queda de Roma, cinco séculos depois. Aqui foi instalada a primeira Escola de Direito do Império Romano, no tempo em que a cidade ganhou o nome de Julia Augusta Felix Berythus. Apagada do mapa pelo maremoto do ano 552, só conseguiu sobreviver pela qualidade do seu porto de águas profundas, o único seguro quando o Mediterrâneo esbraveja entre Istambul e Alexandria. 


Por isso, preferi fazer por terra a partir daqui o trajeto até Jerusalém, como o fazem milhares de peregrinos. Sim, sou apenas um peregrino em busca da Terra Santa, nesta viagem em que dispensei todos os protocolos diplomáticos, as hospedagens em palácios, pagando os hotéis e tudo o mais do meu próprio bolso. Mesmo assim, sem nada gastar do tesouro do Brasil, imagino as caricaturas humorísticas dos jornais do Rio de Janeiro, como as que fizeram sobre a minha viagem ao Egito. Até usando meu rosto numa nova concepção da Esfinge de Gisé, o que, em verdade, só me divertiu, não me ofendeu em absoluto.

- Tout est prêt, Majesté, nous attendons l’ordre de partir.

Sim, vamos partir. Eu poderia dizer simplesmente: En avant! Mas essa ordem, eu vou dá-la em árabe, mesmo arriscando arranhar a frase com minha pronúncia bastarda:

- Alee alaman!

Exatamente às quatro horas da madrugada a caravana inicia a primeira etapa da longa viagem de quinhentos quilômetros até o porto de Jafa, na Palestina, passando por Damasco e Jerusalém. 
De Beirute a Baalbek, no Vale de Bekaa, seguem por uma estrada bem conservada, subindo sempre em direção ao nascer do sol. À frente da comitiva, um cavaleiro empunha a bandeira verde-amarela do Império do Brasil. Logo a seguir desfila o piquete de soldados do Império Otomano, encarregado da segurança. Um privilégio que o imperador brasileiro aceitou, após duas entrevistas com o novo Sultão, Abdul Hamid II, em Istambul. Graças ao Tratado de Amizade, Comércio e Navegação, firmado entre os dois impérios, em 1858, Brasil e Turquia mantém excelentes relações econômicas e culturais. 

Neste momento, enquanto seus olhos ainda não conseguem desvendar a paisagem, Dom Pedro II, que cavalga logo após os soldados, preocupa-se mais em adaptar-se com a marcha em passos curtos de sua montaria, no pescoço da qual bate de leve com a mão direita espalmada, enquanto lhe diz, em voz baixa, algumas palavras em árabe. Aprendeu a falar com os cavalos desde criança, na Quinta da Boa Vista, com seu professor de equitação, o Major Lima e Silva, hoje o Duque de Caxias, herói da pacificação das rebeliões provinciais. Graças a ele e ao Visconde de Tamandaré, seus esteios no Exército e na Marinha, sente-se tranquilo em relação à segurança do Brasil durante a sua ausência. Com os dois patriotas ao alcance da voz, a Princesa Isabel está exercendo sem problemas sua tarefa de Regente do Império. 

Pouco a pouco, a aurora começa a colorir os cimos do Monte Líbano. Impressionante como estão coroados de neve, o que justifica esta capa que a Tereza Cristina insistiu tanto para que eu vestisse. Como estará ela naquela carruagem? E vira-se para trás, fixando os olhos no veículo puxado por seis cavalos, o primeiro de uma série de outros mais, incluindo carroças tracionadas por mulas, que compõem sua enorme comitiva. Certamente tranquila, a minha Imperatriz, rezando ou fingindo que dorme, para que o façam sem pejo suas damas de companhia. Nunca deixa de acompanhar-me em todas as minhas viagens. Ao contrário de outras pessoas que eu gostaria que estivessem aqui e deram volta de Istambul, deixando-me na saudade.


E Dom Pedro II começa a esboçar na mente, sempre em ebulição, mais uma carta para a Condessa de Barral, ou anotações para seu diário, o que decidirá em Baalbek, na parada da noite:


14 de novembro de 1876
Partida de Beirute às 4 da madrugada para Baalbek e Damasco. Bela estrada de onde se vê do alto das montanhas a ponta onde está a cidade, estendendo-se de um lado a costa para o Norte em direção de Trípoli e do outro para o sul na direção de Sidon e Haifa.


Chega disso. Preciso viver os acontecimentos, sem cansar-me em transformá-los de imediato em narrativas. Agora, o que me preocupa é imaginar como está conservado o Templo de Júpiter, em Baalbek, originalmente construído para o homenagear Baal, o deus fenício e cartaginês, que motivou o nome de Aníbal, o filho de Baal.

Sob uma chuva leve, que apenas faz o Imperador acomodar melhor na cabeça o chapéu de abas largas, a comitiva continua a subir a estrada, muito bem calçada, sem atoleiros, atravessando os vilarejos de Kahale, Aley, Bhamdoun, chegando finalmente a Mezher, o ponto mais alto, a mil e quinhentos metros acima do nível do mar. Ali a chuva para, e as nuvens se afastam, como se fossem cortinas de um palco, revelando aos olhos ávidos de Dom Pedro o verdejante Vale de Bekaa, cortado por dois rios, o Litani e o Assi. Por sua fertilidade, este vale, ou depressão do terreno, como seu nome significa, produz três colheitas anuais, tendo sido na antiguidade o celeiro do Império Romano.
Às dez horas da manhã, Dom Pedro II apeia-se da égua, que apelidara de Nevada, diante da Maison Brun, que lhe fora recomendada para o almoço. Foi atraído pela fama da vinícola Domaine des Tourelles, que abastece a adega da estalagem, situada em Chtaura, a novecentos metros acima do nível do Mediterrâneo. Antes de entregar as rédeas ao palafreneiro, faz questão de acariciar o pescoço do animal suarento e de lhe colocar na boca um torrão de açúcar.


Duas horas depois, a caravana toma a direção da cidade de Zahle, já no limite do Monte Líbano. Seguindo em sua cavalgada, Dom Pedro dedica alguns minutos de atenção ao engenheiro Bechara, que lhe conta que esta estrada, aberta e empedrada, está quase pronta, apesar de só empregar o trabalho obrigado de cada homem durante quatro dias do ano e em épocas diferentes das ocupações agrícolas, informação preciosa que o Imperador trata de memorizar para colocar em seu diário. Antes da construção da estrada, levava-se três dias a cavalo para percorrer as vinte léguas entre Beirute e Damasco. Agora, o percurso pode ser feito em treze horas, ao ritmo de uma carruagem com seis cavalos. 

Conquistada a atenção do monarca, Bechara lhe diz ter conhecido em Beirute o Almirante Joinville, casado com a Princesa Francisca, irmã de Dom Pedro II, quando seu marido era comandante da frota francesa no Mediterrâneo. Logo depois, com a queda do Rei Louis Philippe, pai do Almirante Joinville, ele e sua mulher ficaram muitos anos em exílio na Inglaterra. La belle Françoise, como ainda a chamam os amigos franceses, vive agora com seu marido, em Paris, ainda bela nos seus cinquenta e três anos de idade. Pensando em Francisca, o Imperador se emociona, dando-se conta de como está longe da Quinta da Boa Vista, onde foi criado junto da irmã.
A travessia de Zahle, à meia-tarde, por sua rua principal, fica na memória de Dom Pedro II pelo apelido que a cidade recebera, Escudo Cristão, após o terrível ataque sofrido em 1860. Povoada quase somente por católicos maronitas e greco-melquitas, Zahle resistira com muitas perdas ao assédio dos drusos, estimulados pelos turcos, mas conseguira manter sua integridade material e, principalmente, sua fé. 

Exatamente naqueles dias tumultuosos nascera em Zahle o menino Julien, filho de Elias e Catarina Cheuiche, agora um adolescente órfão de pai e mãe. Tendo um tio vivendo em Montevidéu, ele sonha também em partir para a América do Sul, em especial para o Brasil, país sobre o qual já leu tudo o que lhe foi possível. Assim, ao correr a notícia de que o Imperador Dom Pedro II vai atravessar a cidade em seu caminho para pernoitar em Baalbek, Julien decide postar-se desde cedo junto à fonte, bem no centro da cidade, famosa pela qualidade da sua água, sempre fria, mesmo nos dias mais tórridos. Talvez o Imperador do Brasil interrompa sua marcha para matar a sede?
Horas e horas fica o jovem Julien, de dezesseis anos, à espera da caravana. Ao seu lado, a irmã mais moça, Laama, tem às mãos uma jarra de prata, preciosidade herdada de sua mãe, que a ganhara do filho mais velho, Said Cheuiche, que mercadeja, com seus doze camelos, entre o Líbano, a Síria, a Palestina e o Egito. Quem sabe pudessem oferecer água ao monarca naquela linda jarra cinzelada com arabescos?

Anos mais tarde, vivendo na cidade de Caçapava, no Rio Grande do Sul, aquele libanês de Zahle, registrado no Brasil como Julião Cheuiche, ainda recordava aquele dia 14 de novembro de 1876, como o mais importante de sua vida. E contava à sua mulher Maria Cândida de Vargas e aos seus filhos e filhas como vira o Imperador Dom Pedro II cavalgando à testa de sua enorme caravana, com seus cabelos esvoaçantes (pois tirara o chapéu para o povo) e a barba, entre loura e grisalha, brilhando ao sol. E de como jurara para si mesmo que ainda viveria naquele país longínquo, custasse o que custasse. E para lá partiu, fugindo de casa, no ano seguinte, 1877, trabalhando como grumete em três diferentes navios.

Dom Pedro II estimulou a imigração de milhares de libaneses, muitos deles de Zahle, para os mais diferentes rincões brasileiros. Mas, antes disso, sua passagem pelo Escudo Cristão torna-se imediatamente um fato histórico. Nem bem a poeira erguida pela comitiva volta a assentar-se, os moradores passam a chamar a rua principal da cidade de Avenida Brasil. 

* Membro da Academia Líbano-Brasileira de Artes, Letras e Ciências.


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895