Espaço para a cultura no jornalismo

Espaço para a cultura no jornalismo

Jornalista, crítico e doutor em Comunicação e Informação, Everton Cardoso, analisa os suplementos culturais, destacando a importância do Caderno de Sábado

Correio do Povo

Caderno de Sábado sobre grandes pensadores em 15 de agosto de 21015

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Uma década desta nova fase Caderno de Sábado é, sem dúvida, um momento importante de se marcar. Diferente de seu antecessor histórico por ter se adaptado ao contexto e aos formatos deste século XXI, o atual contribui para a circulação de ideias no Rio Grande do Sul, desempenhando um papel de relevância no jornalismo cultural num momento em que essa área passa por profundas transformações e enfrenta grandes desafios.

Mesmo que o atual suplemento do Correio do Povo tenha incorporado o que antes não se encontraria em um caderno do gênero – como elementos que eram mais característicos das editorias diárias de cultura –, ainda traz muito dos traços típicos de seu homônimo dos anos 1970, sobretudo com a veiculação de artigos de análise e reflexão sobre temáticas variadas ligadas à cultura.

Desde que o Caderno de Sábado deixou de ser publicado em sua primeira fase, que durou de 1967 a 1981, havia restado nostalgia para a intelectualidade e o público leitor do Rio Grande do Sul. Mesmo que tenham surgido outros projetos ligados a jornais ou em formatos de revistas independentes, nenhum chegou a operar com a mesma relevância e prestígio por tanto tempo e de modo ininterrupto.

Seguindo a tradição de publicações que o antecederam no contexto nacional ao fazer circular o pensamento e a produção artística, o antigo Caderno de Sábado abriu espaço para publicação de textos de relevância em suas páginas semanais - que variavam entre 16 e 20.

Os cadernos semanais de cultura contribuíram para um ideal de formação cultural por meio do contato com as letras, artes e humanidades. Eram simultaneamente a formação da pessoa culta em si - aqui num sentido restritivo e bastante elitista - e também um meio de acesso à produção cultural - já que realizavam um processo de curadoria, como hoje se convencionou chamar. Diferenciavam-se, dessa forma, do noticiário mais cotidiano das editorias de cultura, nos quais era possível estar a par de novidades e eventos do campo cultural.

No caso do Caderno de Sábado, dados históricos nos mostram que esse projeto esteve entre os principais suplementos semanais de cultura do país entre os anos 1960 e 1980, sendo depois seguido por outras publicações similares no Rio Grande do Sul. Essa verdadeira enciclopédia de saberes assumiu, pois, uma ênfase na formação do sujeito culto, evidenciada em manifestações como a estética, a linguagem e o trabalho intelectual. Foi lugar para o acúmulo de saberes como objetivo e também um espaço importante de distinção social tanto para quem nele publicava quanto para quem o lia.

O Caderno passou a ocupar posição de representante de uma geração intelectual, retratando um período da história do Rio Grande do Sul em que se processavam transições importantes - as universidades ganhavam corpo e força, o jornalismo se profissionalizava ainda mais, a comunicação se transformava com a televisão, o campo de produção artística se institucionalizava e o mercado editorial se reorganizava.

Contexto de transformações. Na segunda metade do século passado, o jornalismo cultural como um todo se configurou como um conjunto de meios, formatos e gêneros muito diversos – incluindo seções, editorias, suplementos, jornais, revistas, programas de rádio e TV e, mais tarde, blogs. Os propósitos incluíam a divulgação da programação e da produção cultural, a análise por meio de resenhas, críticas, ensaios e artigos e a veiculação de criação artística – com contos, crônicas, excertos literários e reproduções de obras de arte. As temáticas também variavam das mais restritas e especializadas às mais amplas e massificadas - do debate acadêmico ao noticiário de celebridades. Os suplementos, nesse contexto e principalmente a partir da primeira década do século XXI, foram se abrindo e diversificando aos poucos, mas ainda como lugares da “ilustração” e da formação cultural, seguindo na marca que os delineou.

Nesse cenário, emergem questões relevantes sobre o lugar dessas publicações nos temos atuais: como, depois da onipresença das redes sociais e dos smartphones, nos informamos e inserimos na vida cultural? Se antes, de diferentes formas e com distintas abordagens, eram as editorias diárias e os suplementos que semanais exerciam os papéis de mediação, divulgação e organização da circulação de ideias, nos últimos anos isso se transformou significativamente.

No contexto difuso e plural no qual nos encontramos, a imprensa passou a ser uma das formas de estabelecer essas relações, não mais a única e talvez nem a principal. Em geral, se há algum ou alguma artista ou instituição cultural que interesse, por exemplo, o mais comum é que se passe a seguir e interagir de alguma forma por meio de redes sociais. Isso porque em perfis e páginas são publicadas tanto as movimentações - como lançamentos - quanto as oportunidades de contato com artista e obra - os eventos, por exemplo. Outra forma é por meio de perfis especializados ou mesmo de influenciadores, youtubers e afins que nos apresentam seus pontos de vista.

Para além disso, a própria noção de cultura tem passado por mudanças profundas, cada vez mais expandindo sua abrangência. Primeiro, porque as formas de acesso à produção cultural modificaram muito nossa relação com tudo isso. Afinal, muito do que desejamos está à nossa disposição a partir de alguns cliques ou pode ser recebido na porta de casa ou ainda pode ser experimentado de forma indireta (como nas visitas virtuais a museus e transmissões de espetáculos). Paralelamente, os algoritmos que definem o que se apresenta nos feeds de redes sociais e o ranqueamento que organiza os resultados dos motores de buscas acabam por operar processos de curadoria que não necessariamente estão atrelados a mérito artístico - ainda que este último possa ser ponderado ao ser gesto interpretativo e não qualidade intrínseca a uma obra.

Em segundo lugar, cada vez mais se fundem produção cultural num sentido mais estrito e vivência cultural, muito na lógica do “rolê”. Ou seja, a formação do sujeito culto se mistura com o entretenimento e o lazer de modo muito mais profundo e orgânico do que antes sem que isso necessariamente represente uma mudança qualitativa. A experiência é tão importante quanto o objeto ao qual se tem acesso por meio dela - assim como são igualmente importantes as imagens que essa experiência pode gerar não só como memória dela, mas como parte integrante.

Além disso, os critérios de valoração e escolha não podem seguir os mesmos, já que estamos num ambiente em que as ofertas são muitas tanto pela facilidade de se produzir quanto de circular artisticamente. Como é possível não olhar para manifestações como o slam, o hip hop, a música brega, a arte e o artesanato indígenas e o carnaval? Deste último, aliás, talvez tenhamos uma recente evidência disso: o aumento enorme da procura pela obra “Um Defeito de Cor”, de Ana Maria Gonçalves, decorrente do desfile da Portela no Rio de Janeiro e de sua repercussão. Tratam-se de uma obra essencial, uma autora importante e uma instituição cultural brasileira em confluência.

De qualquer forma, não levanto essas reflexões com o objetivo de pensar sobre o que deve se encerrar, modificar ou permanecer, mas acreditando que é preciso variedade e pluralidade tanto na produção cultural quanto nos espaços que nos permitem ter contato direto ou indireto com ela. O Caderno de Sábado em sua forma atual ocupa uma posição justamente nesse espaço. Se vemos no Brasil muitos veículos cedendo a lógicas mais imediatistas e uniformizadoras, este lugar de reflexão que tem uma temporalidade diferente é um respiro para momentos em que desejamos desacelerar, nos desconectar da vida em rede e nos conectar com a reflexão sobre o nosso tempo e suas questões mais duradouras e profundas por meio do contato com o mundo da produção cultural e das ideias.


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895