Ficção com a mãe por destino

Ficção com a mãe por destino

Escritor e psicanalista Celso Gutfreind resenha o livro da psicanalista e escritora Rafaela Degani, "Menina em Claro"

Celso Gutfreind *

Rafaela Degani é psicanalista e autora do livro "Menina em Claro"

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Por razões de ofício (literário), resenhei livros, com alguma frequência. Se um escritor põe em prática este ofício, é porque vive pensando sobre a natureza dele. Não bastando uns oitenta por cento da psicanálise ter vindo da literatura – e, de certa forma, chegar a sê-la - tem aqui outro ponto de aproximação entre elas. Também o analista vive de uma prática sustentada pela teoria (estética) e pode, com algum esforço, circular pelas duas. E, para quem põe a mão nas massas, sempre haverá alguma coisa carnal para dizer. 

Mas há um detalhe e, por ser humano, cabe em uma história. O jovem Moacyr Scliar queixava-se ao experiente Érico Veríssimo de que este fazia prefácios melosos e apresentações laudatórias de livros que o postulante à literatura considerava fracos. Tempos depois, tomado pela generosidade adquirida no caminho, Scliar passou a fazer a mesma coisa. E perdoou o mestre. 

Meu caso é duplamente diverso. Primeiro, porque não cheguei à grandeza deles. Segundo, porque no tamanho que me coube, segui os conselhos de meu guru maior, o poeta e crítico literário Paulo Hecker Filho, que havia seguido os conselhos de seu guru maior ainda, o T. S. Eliot. E, ao contrário de Scliar e Veríssimo, considerava a verdade como a maior das generosidades. Por isso, não dourava a pílula e dizia o que pensava. Novamente metido com gente muito maior do que eu, venho tentando a mesma coisa.  

Acrescento ao imbróglio uma pitada de Caio Fernando Abreu, que só falava publicamente sobre o que gostava, preferindo calar, se não fosse o caso. Quando levei meu livro de estreia para ele – a casa de Caio daria outras histórias -, ele disse que preferia se pronunciar no próximo. E rimos juntos, ele e eu, sob os ecos do choro do meu narcisismo. 

Hoje, tal qual o Caio, digo publicamente o que penso e o que sinto, só quando gosto. Por isso, não importa se o(a) bardo(a) é colega ou é amiga, como no caso. O que penso de Menina em Claro (editora Patuá), romance de estreia de nossa colega Rafaela Degani, é que pode ser lido como uma longa carta à mãe, aos moldes em que Kafka fez a sua para o pai, transformando em palavras a difícil convivência com um progenitor autocrático, a quem Faimberg (Cramer ou Lebovici) talvez chamasse de tóxico. O livro do tcheco tornou-se um clássico de não ficção de um dos nossos maiores ficcionistas. Mais que isso: um mapa para compreender o artista, em sua psicologia da composição ficcional. 

Rafaela faz diferente. Faz ficção, e a destinatária é a mãe. A mãe que terceirizava a filha para a vó, a mãe que deixava pouca comida em casa, a mãe que desejava uma filha obediente, a mãe que gritava, que perdia a paciência, que agredia, que, que, que. Então, há uma sucessão de páginas sobre uma mãe real, em suas lacunas, em sua insuficiência, nas interações da vida como ela é, durante uma infância e uma adolescência. 

Mas Rafaela é ficcionista. E psicanalista. Assim, o ritmo e a trama da história, que represento escassamente para evitar spoiler, vão vestindo a crua nudez dessa mãe, com novos sentidos de uma nova versão. E cada manifestação de ódio e ambivalência ganha possibilidades diversas. Não, não é psicanálise, embora a narradora-personagem seja uma terapeuta. É literatura, do mais alto quilate, com frases abertas que, à la Bion, vão abrindo outros mundos, desejo maior de um leitor (e de um analisando, talvez).  

O resultado é que, no caminho de cada página, amamos e odiamos essa mãe. E, como ler é viajar por dentro, revisitamos a nossa, que, pessoal e universal, não é lá tão diferente. A diferença é que a nossa própria mãe andava meio sem palavras, e ler é, tal qual em uma análise, encontrá-las.  

Dentro do clima de abertura polissêmica, desejado por toda obra aberta, como a literatura (justo aquela que o grande Freud ensaísta mais invejava), há conotações políticas (a ditadura), geográficas (a praia), temporais (se passa na pandemia). E há outro detalhe, decisivo, de bastidor. Ao decidir escrever o seu livro, a autora procurou uma consultora, no caso a escritora Helena Terra. Humildemente, Rafaela aceitou reescrever cada trecho, topando a luta vã com a palavra, todos os dias, mal nasce a manhã, essa de quem nem Drummond escapava. Arte – esporte, vida em si – costumam agradecer a uma humildade dessas, deixando de ser vãos, e acontecendo. 

O conteúdo, enfim, veste forma. Um livro acontece. E, como uma psicanálise bem sucedida (mas é arte), consegue dizer, de forma nova e própria. Caio Fernando Abreu não esperaria a próxima obra da Rafaela para se pronunciar, com entusiasmo: eu que me vire com o meu ciúme.  

Paulo Hecker Filho, este guru chato e eficaz, amaria com sobras.  

Como um bom discípulo, é claro que faço o mesmo, do meu jeito. 

* Escritor e psicanalista. 


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895