FiliGram: como foram os principais momentos do primeiro Festival Internacional Literário de Gramado

FiliGram: como foram os principais momentos do primeiro Festival Internacional Literário de Gramado

Evento gratuito foi iniciado na Serra gaúcha no dia 2 e vai até este domingo; leia reportagem e assista ao vídeo especial

Henrique Massaro

Músico e escritor Zeca Baleiro e autor português Afonso Cruz foram destaque

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O primeiro capítulo está parcialmente escrito. Nele, uma cidade consagrada há décadas por um festival de cinema e outras atividades culturais tomou contato com sua primeira grande experiência verdadeiramente literária. Houve apresentação de cenário e personagens, múltiplas visões, geração de conflito, desenvolvimento e resolução parcial da história. Ao colocar o ponto final, neste domingo, Gramado terá, enfim, realizado o primeiro festival internacional literário da Serra gaúcha, o FiliGram, reunindo dezenas de escritores e personalidades do Brasil e de outros países durante mais de uma semana na região. Os ingredientes para uma boa história já estão postos, assim como os aprendizados para que ela ganhe novas páginas nos próximos anos.

É intelectualmente desonesto comparar a adesão de público do primeiro FiliGram com, por exemplo, o Festival de Cinema de Gramado, seja pela longevidade de quase 50 anos do evento cinematográfico ou pela diferença numérica que sempre há entre espectadores e leitores, sobretudo no Brasil. Isto posto, a adesão da plateia durante o evento oscilou desde o início da programação, no dia 2 de setembro. Além de mais de uma semana de atividades, as dezenas de mesas, oficinas e conversas se dividiram entre o auditório principal e espaços menores montados nas imediações do Lago Joaquina Rita Bier, sede da Secretaria Municipal de Cultura. Nos primeiros dias, com baixas temperaturas, houve um número reduzido de participantes. Com uma leve amenizada no frio intenso, o público começou a se aproximar, aderindo em peso, por exemplo, ao bate-papo do músico Zeca Baleiro, que lançou seu livro “Memórias do Estaleiro” durante o evento.

Múltiplas vozes

Para os apreciadores da literatura, um dos grandes atrativos de um festival literário internacional é estar em meio a grandes autores. Em mesas no auditório principal, mas também assistindo às atividades e circulando pelas bancas da Feira do Livro – que, este ano, pela primeira vez, saiu da rua coberta para acontecer dentro do FiliGram – o escritor português Afonso Cruz, autor de “Vamos comprar um poeta” e outras dezenas de livros, era um dos convidados mais participativos. “Gostei muito do festival e também foi uma surpresa Gramado, não conhecia, é uma cidade muito particular no contexto brasileiro, gostei muito de estar aqui, conheci uma série de escritores e pude comprar livros destes mesmos escritores”, contou o autor.

Afonso Cruz participou, por exemplo, de conversas sobre os pontos de convergência entre a literatura portuguesa e brasileira ao lado de Zeca Baleiro. Além da língua, as narrativas produzidas nos dois países têm em comum, diz ele, o mesmo que a boa literatura sempre contém: o senso de universalidade. “A literatura encontra-se sempre com as pessoas, pois tem um fundo humano que é universal e, na verdade, o caroço que interessa à literatura, a sua essência, é humana e, portanto, é comum a todos nós.” Ele cita, por exemplo, “A Ilíada”, escrita há milhares de anos, e que continua atual, porque não se trata de um livro sobre a guerra entre gregos e troianos, mas sobre a alma humana.

Assim como Afonso Cruz, outra das grandes convidadas do FiliGram estava presente não somente nas suas mesas. A sul-africana Futhi Ntshingila, autora de “Sem gentileza”, seu único livro publicado no Brasil, assistiu a diversas atividades, sempre com um casaco emprestado por algum outro participante do evento. Ao saber que viria para o Brasil, ela esperava um clima diferente do frio próximo de zero grau do Sul. “Mas, além disso, eu acho que qualquer cidade que promove leitura, escrita e livros é uma cidade para ser elogiada, porque acho que é realmente importante e acho que é quando encontramos conexão em termos de humanidade e de assuntos sérios”, contou a autora, em entrevista ao Correio do Povo.

Diversidade na Serra

A proposta de trazer diversidade para o primeiro evento internacional literário de Gramado começou com a escolha do homenageado: o poeta gaúcho Oliveira Silveira, que morreu em 2009 deixando uma extensa obra literária e um legado como um dos idealizadores do Dia da Consciência Negra. A representatividade, contudo, não ficou apenas na homenagem. Além de falas e uma exposição sobre o poeta, o FiliGram contou com apresentações indígenas e com a participação de autores como Ronald Augusto, Paulo Scott, Kiusam de Oliveira, José Falero e Taiasmin Ohnmacht debatendo, sob diferentes perspectivas, a literatura produzida por autores negros.

As discussões chegaram a provocar, inclusive, pequenos atritos no município. Kiusam, por exemplo, reconhecida pela ONU como importante autora de livros infantis, criticou falhas na organização do evento e a receptividade de algumas pessoas na Serra gaúcha com os autores negros e com os assuntos trazidos. “Isso é sintomático do lugar mesmo, que não vê a questão negra ou o corpo negro como uma questão chave, central”, disse ela, que foi aplaudida de pé após sua fala inicial. Numa mesa sobre violência, acompanhado de Taiasmin e Futhi, além do escritor paraense Edyr Augusto, o escritor Danichi Hausen falou sobre a necessidade de se gerar certas inquietudes. “Não se altera uma placa tectônica sem que se cause um terremoto.”

A frase de Hausen, assim como outros apontamentos feitos ao longo do FiliGram, foram bem recebidos pelos organizadores. “Acho que o evento está conseguindo levantar uma discussão interessante para Gramado, que talvez não tenha sido feita até então, e por isso que talvez tenha causado alguma estranheza para algumas pessoas”, comentou o secretário de Cultura do município, Ricardo Reginato. Ele avalia que, apesar de pontuais descontentamentos de moradores com bandeiras levantadas, a receptividade foi positiva. “As pessoas de Gramado são esclarecidas e sabem, entendem um evento como esse. Óbvio que sempre tem uma polêmica ou outra, e nem gostaríamos que não fosse assim, porque estamos falando de literatura, e a literatura tem um papel de provocação também. Os autores que trouxemos são extremamente provocativos e tiram as pessoas da sua quietude.”

O coordenador geral do festival, Fernando Gomes, também faz um balanço positivo, ao mesmo tempo que admite pontuais transtornos na organização. O atraso de um convidado, a dificuldade de encaixar a agenda de outro, a necessidade de maior divulgação junto a determinado público – todas essas são questões de imprevisibilidade de um grande evento. Sobre as discussões levantadas pelo FiliGram, ele reafirma que a curadoria julgou importante trazer pautas que promovessem debates que poderiam encontrar pessoas que não estão dispostas a escutá-los. “Achamos que debater racismo, preconceitos, feminismo, é necessário. Tem gente que acha que não existe, mas aí nós é que não entendemos – parafraseando o José Falero – em que mundo essas pessoas vivem.”

Novos laços

Durante a programação, circulou pelo FiliGram uma comitiva vinda de Óbidos, município do oeste de Portugal que é irmanado com Gramado desde 2007. Segundo os vereadores Telmo Félix e Ana Margarida Reis, que vieram acompanhados da escritora Célia de Souza, houve um arrefecimento da relação entre as duas cidades ao longo dos anos, que agora está sendo novamente estreitado. Óbidos tem semelhanças turísticas com Gramado: tem eventos turísticos envolvendo o chocolate e o Natal, além de um festival literário internacional, o Folio, organizado desde 2015. Reconhecida como cidade criativa para a literatura pela Unesco, Óbidos criou estratégias para tornar o Folio mais atrativo para a comunidade, criando uma rede literária dentro de espaços como uma antiga adega e em mercados. “Isso não é um caminho linear, há erros pelo caminho, mas hoje já estamos numa perspectiva de civilidade e inclusão, ou seja, que o evento seja para todos e de forma igual”, comentou Félix.

A acessibilidade foi ressaltada por Célia como uma aposta interessante, que pode servir também ao FiliGram. “Como defendo o livro para todos, em braille, libras, áudio, linguagem pictográfica, quem sabe não podemos, através disso, tentar democratizar a leitura chegando a diferentes públicos e mostrar que esses festivais podem trabalhar a pauta da inclusão e da acessibilidade para a população em si? Ou seja, para Gramado perceber que não há pessoas padrão, e que, sendo uma cidade turística, que tal começar a pensar que pode ser no futuro um local para onde também possam vir essas pessoas usufruir desse espaço encantado? Isso pode alavancar outro tipo de turismo”, explicou.

Um dos objetivos da comitiva portuguesa é criar uma rede de festivais literários com o Brasil, o que inclui, além do FiliGram, o Flipoços, de Poços de Caldas, em Minas Gerais, e a Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, no Rio de Janeiro. O secretário de cultura de Gramado, Ricardo Reginato, por exemplo, já foi convidado para participar do Folio, que acontece em outubro. Quanto ao FiliGram, a proposta, por enquanto, é de que o evento seja bienal.


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895