Formação ontem, hoje e amanhã

Formação ontem, hoje e amanhã

Marcelo Frizon *

Formado em Sociologia, Antonio Candido começou carreira como crítico literário por volta dos 20 anos

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“Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos”, de Antonio Candido (1918-2017), ganha nova edição pela Todavia, que também está reeditando o restante da obra do maior crítico literário brasileiro de todos os tempos. As constantes reedições desse livro e do restante da obra do estudioso continuam provocando reflexões acerca de sua qualidade e atualidade.

Formado em Sociologia, Candido começou carreira como crítico literário com pouco mais de 20 anos. Nessa época, viu surgir ao vivo Clarice Lispector, Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto, sobre os quais escreveu nos lançamentos de seus primeiros livros. Pouco depois, ao defender a livre-docência em literatura na Universidade de São Paulo, conquistou o título de doutor em Literatura e migrou definitivamente para a área que o consagraria. Logo depois disso, em 1945, recebeu a proposta para escrever uma nova história da literatura brasileira. A ideia se transformou na Formação, livro que se alinha a outras grandes obras de interpretação do país, como “Os donos do poder” (1958), de Raymundo Faoro, “Raízes do Brasil” (1936), de Sergio Buarque de Holanda, e “Casa grande e senzala” (1933), de Gilberto Freyre, cada uma analisando o Brasil sob perspectivas diversas.

A ideia central da Formação era mostrar como se constituiu aqui esse processo em que autores publicam suas obras e são lidos por um público leitor, gerando tradição. Para isso, Candido se abasteceu do melhor da crítica ocidental e acabou sendo o primeiro analista da literatura brasileira a abordar sua história com método e critérios para identificar erros e acertos de nossos autores, mostrando como seus trabalhos resultaram na ascensão do primeiro grande escritor, Machado de Assis, o ponto de chegada dessa tradição. Foi o criador de Dom Casmurro quem soube rejeitar os problemas e melhorar o que era bom da produção de seus colegas para escrever uma obra superior. Machado, no entanto, não é analisado na Formação, apenas citado vez ou outra. Sua presença ali é um norte, é a linha de chegada. Candido conclui sua análise nos prosadores românticos.

Apesar da delimitação bem estabelecida, Candido também publicou dezenas de outros livros de crítica literária, que reuniam ensaios e textos publicados em jornal. No conjunto, esses livros completam as lacunas deixadas pela Formação. Um caso exemplar é “Esquema de Machado de Assis”, texto de 1968 reunido em “Vários Escritos” (livro de 1995), em que o crítico faz uma retomada de vários aspectos da obra de Machado, quase como se estivesse publicando um capítulo inédito da Formação.

Outro exercício interessante para quem gosta do assunto é comparar as análises de Candido na Formação com as que ele produziu posteriormente. Na Formação, a respeito das Memórias de um sargento de milícias, ele escreve que Manuel Antonio de Almeida “pressagiou entre nós o fenômeno de consciência literária que foi Machado de Assis, realizando a obra mais discretamente máscula da ficção romântica”. Anos mais tarde, já durante a ditadura militar, o crítico voltaria às Memórias em um de seus ensaios fundamentais: “A dialética da malandragem” (de 1970), reunido no livro “O discurso e a cidade”, publicado pela primeira vez em 1993. Impressiona o salto qualitativo e analítico realizado do comentário da Formação para “A dialética da malandragem”. Candido demonstra como Almeida captou em seu livro os movimentos de personagens populares que giravam em torno dos pólos da ordem e da desordem e como até aqueles que deviam manter a lei acabavam eventualmente se esbaldando. Para um bom intérprete, não é difícil traçar paralelos entre a ficção mais “discretamente máscula” da literatura romântica e a realidade brasileira de 1970 ou mesmo a contemporânea.

E este é outro ponto alto da produção candidiana: o crítico nunca está falando apenas de literatura. Sua análise se concentra no texto, está claro, mas o que o provocava a escrever eram as associações possíveis entre a matéria literária e a sociedade ali retratada. Candido sempre pareceu preocupado em entender como um livro ressignificava a vida social. Por isso, dedicou-se a escrever sobre autores tão díspares como Manuel Antonio de Almeida e Guimarães Rosa, ou como Gonçalves Dias e Clarice Lispector.

Por outro lado, também é curioso constatar que um livro como a Formação siga instigando interpretações a respeito da literatura produzida no Brasil, porque foi publicado pela primeira vez em 1959 e, desde então, os estudos literários avançaram muito no país. Antes de avançar nessa observação, é necessário observar que a prosa de Antonio Candido é clara, objetiva e elegante, características difíceis de serem conciliadas em textos profundos e refinados como os que produziu. Então, é inegável que a Formação e os outros livros do crítico mantenham um charme diante de outros estudos literários que, muitas vezes, parecem ter sido escritos para confundir o leitor, como se a análise literária devesse ficar circunscrita a especialistas.

Agora, sim, avançando, cabe observar que o advento das cotas nas universidades públicas, a partir dos anos 2000, formou uma nova geração de estudiosos que trouxe à tona autores esquecidos ou pouco lidos. Os casos mais notáveis talvez sejam os de escritoras, como Maria Firmina dos Reis e Julia Lopes de Almeida (que inclusive têm sido utilizadas como leituras obrigatórias de concursos vestibulares do sul e do sudeste do país). A primeira é provável que Candido não conhecesse no período em que escreveu a Formação, a partir de 1945. A segunda, se conhecia, foi ignorada (talvez porque o período analisado pelo livro corresponda ao Arcadismo e o Romantismo, anteriores ao nascimento da autora de A falência, embora o crítico cite autores de diferentes épocas em seu livro). É claro que a ausência dessas autoras (ou de outras — e outros) não diminui a contribuição decisiva de Candido para os estudos literários, mas é provável que leitores contemporâneos progressistas reclamarão cada vez mais desse tipo de ausência.

No entanto, a obra candidiana sempre esteve aberta ao diálogo. Inclusive, é fácil perceber que Roberto Schwarz é o seu grande herdeiro, já que deu prosseguimento ao estudo de Machado de Assis como Candido não pôde fazer. Assim, outros críticos têm se dedicado a estudar obras e autores a partir das análises e dos conceitos consagrados por Candido.

Além disso, estudos recentes também têm proposto revisões das ideias de Candido, como é o caso do professor Luís Augusto Fischer em seu “Duas formações, uma história - das ideias fora do lugar ao perspectivismo ameríndio” (ed. Arquipélago, 2021). Com argúcia e fôlego, Fischer mostra achados e limites da Formação a partir de formulações de Jorge Caldeira, Roberto Schwarz e de Eduardo Viveiros de Castro, entre outros, para então propor novas alternativas para a história da literatura brasileira. A partir disso, podemos concluir que Candido seguirá sendo lido, mas principalmente seguirá sendo um crítico a ser seguido, imitado e debatido. Sem sua obra, a literatura brasileira definitivamente não seria tão rica e interessante. 

* Mestre em Literatura pela Ufrgs. Professor dos colégios Dom Bosco e Maria Imaculada 

OS LIVROS

Em março, a Todavia lançou “Formação da literatura brasileira”, “Os parceiros do Rio Bonito”, “Literatura e sociedade”, “O discurso e a cidade”, “Iniciação à literatura brasileira. Em 2023/24 virão: “Vários escritos”, “Um funcionário da monarquia”, “Teresina etc.”, “A educação pela noite”, “Brigada ligeira”, “O método crítico de Silvio Romero”, “Ficção e confissão”, “O observador literário”, “Tese e antítese”, “Na sala de aula: cadernos de análise literária”, “Recortes”, “O albatroz e o chinês”.


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895