Gigantes e diferentes

Gigantes e diferentes

Diretor teatral e ávido leitor, Luciano Alabarse, aborda as obras de três grandes da literatura dos EUA, Ian McEwan, Jonathan Franzen e Cormac McCarthy, morto este mês

Luciano Alabarse *

Cormac McCarthy morreu em 13 de junho de 2023, aos 89 anos, em Santa Fé, no Novo México (EUA)

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Cormac McCarthy morreu. Um dos nossos maiores escritores, às vésperas de completar noventa anos, partiu após o lançamento de dois romances complementares, “O Passageiro” e “Stella Maris”. Ganhador de todos os principais prêmios literários dos Estados Unidos, incluindo o Pulitzer, nunca foi um escritor fácil, nunca escreveu para as massas, nunca teve medo da crítica. Sua literatura é seca, indigesta, pesada. Espécie de esteta do faroeste americano, a aridez dos cenários retratados por ele, ranchos, rifles e cavalos são tão protagonistas como os personagens criados por sua escrita viril e inclemente. Nenhum dos seus livros me pareceu de fácil leitura e essa sensação se repetiu, ainda mais, com o novíssimo “O Passageiro”. Bobby Western, o personagem central, trabalha como mergulhador, e o romance começa assim, ele chamado às pressas para resgatar nove corpos presos aos assentos de um jato afundado nas profundezas do oceano. Western é atormentado por uma paixão incestuosa pela irmã já morta, que ele trata de não esquecer. Dividido em capítulos que alternam os narradores, Western e sua irmã – que ouve vozes e dialoga com seres imaginários, não há freios na narrativa. Se os capítulos protagonizados por Bobby são relativamente compreensíveis, os que contemplam a irmã morta e suas companhias alucinadas, é um tijolo arremessado em direção ao cérebro. Difícil, mas magnético, impossível de largar.

 

A imprensa nacional, exceção feita à Folha de S. Paulo, tratou a morte do escritor sem o devido reconhecimento. Artistas gigantes quando partem nos deixam órfãos e, ao mesmo tempo, dispostos ao cultivo de seus legados artísticos imprescindíveis. Ao me dar conta que tinha emendado a leitura de McCarthy com romances de outros dois gigantes da literatura mundial, Ian McEwan e Jonathan Franzen, parei para pensar em suas distintas diferenças.


Jonathan Franzen é um escritor cativante. Suas criações são envolventes e interessantes. “Pureza” e “As Correções” devolvem ao leitor o prazer da boa literatura. O mesmo acontece com “Encruzilhadas”, recém lançado no Brasil, prova definitiva de seu domínio narrativo. Os personagens, desenvolvidos com maestria e leveza, tornam evidentes sua habilidade em construir personagens complexos, contraditórios e psicologicamente à beira de um ataque de nervos, envolvidos com questões sociais e políticas de um Estados Unidos sempre mergulhado em crises internas de desigualdades sociais profundas.


Franzen, desta vez, foca sua escrita ao redor de um pastor protestante, Russ Hidebrandt, e sua família problemática. A humanidade dos personagens salta a cada parágrafo, e as contradições, ansiedades e escolhas em meio ao rigoroso inverno americano de 1971 nos envolvem e emocionam. Ia escrever que a leitura dos romances de Franzen é “deliciosa”, adjetivo para lá de absurdo e inadequado. Mas penso que é um adjetivo que encontra sua razão de ser no próprio conceito dessa sensação demasiadamente humana. A dor e a delícia de ser o que se é. O autor envolve o leitor da primeira à última página, e não é sempre que isso acontece.


O trio de autores fabulosos se completa com Ian McEwan. Seu último romance, “Lições”, não recebeu a devida atenção da crítica brasileira, atitude incompreensível, afinal o autor de “Reparação”, “Na Praia” e “Enclausurado”, sempre foi reconhecido e, com justiça, incensado. Com o atual lançamento, comprovamos mais uma vez a maestria do autor. Da Guerra Fria à Crise dos Mísseis em Cuba, da queda do Muro de Berlim à pandemia da Covid-19, o livro acompanha a vida de Roland Baines nesse contexto de distopias e mudanças políticas que varrem as últimas décadas da sociedade ocidental. O personagem vai reduzindo suas possibilidades e uma mediocridade calculada e incômoda. Baines é um personagem fascinante. Adolescente assediado por sua professora de piano, carrega o peso dessa experiência vida afora. O autor parece fustigar a experiência humana perguntando até que ponto temos real controle sobre nossa vida, como podemos ser nós mesmos sem prejudicar os outros ao nosso redor? Através de uma prosa brilhante, Ian McEwan constrói uma história banal sobre o cotidiano de um personagem medíocre, para nos perguntar se é de fato possível aprender alguma coisa com os traumas do passado.


Cormac McCarthy, Ian McEwan e Jonathan Franzen são escritores diferentes em forma, estilo e narrativa. Mas os três têm domínio absoluto da palavra escrita. E eu que os acompanho há anos, assim como acompanho a obra de Paulo Scott e Jefferson Tenório, gosto de me impregnar com suas histórias e personagens. O que une esses gigantes, para além de suas diferenças e origens distintas, é o talento incomparável de manter vivo o interesse do leitor.

 

* Diretor teatral. Ex-secretário de Cultura de Porto Alegre e Canoas.


Correio do Povo
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