Glória, desmonte e esperança: Fumproarte 30
publicidade
Imagine uma cidade na qual, a cada semana, estreasse um novo filme ou espetáculo, um livro ou disco fosse lançado, uma exposição fosse inaugurada... Produções locais, com trabalhadores justamente remunerados. Incrível? Pois essa era Porto Alegre num passado recente. Entre 1997 e 2008, a Prefeitura patrocinou em média 45 projetos culturais anualmente, por meio do Fundo Municipal de Apoio à Produção Artística e Cultural, o Fumproarte. O auge ocorreu em 2007, com 57 projetos.
Esse mecanismo simples e eficaz de apoio à cultura nasceu há 30 anos com a Lei 7.328, de 4 de outubro de 1993. Sob a inspiração democrática da nova Constituição, a Lei determinou que os projetos fossem selecionados, através de concursos públicos, por uma Comissão de Avaliação e Seleção (CAS), com maioria de representantes da comunidade cultural. Solução inventada aqui num momento difícil para as artes no país, após a extinção do Ministério e de outras instituições federais de cultura. A democracia marcou a própria gênese da Lei, precedida por encontros entre artistas, vereadores e gestores da Secretaria Municipal da Cultura (SMC). Já no ano seguinte, saía o primeiro edital, aberto a todos os tipos de produção cultural, ao qual se seguiram outros, com religiosa periodicidade semestral nos 15 anos posteriores.
Entre 2002 e 2007, prêmios nacionais amplificaram a fama do Fumproarte para além das fronteiras do Estado e do país, levando-o a servir de modelo para leis similares em outros municípios (como Caxias do Sul) e estados (como o Rio de Janeiro). Foi também objeto de uma dissertação de Mestrado na City University de Londres, em 2008.
O custo desse pequeno milagre? Apenas 0,1% do orçamento municipal (média dos 15 primeiros anos). Em valores de 2023, seriam R$ 10,5 milhões.
A derrocada começou na gestão Fortunati (2013-2016), que reduziu drasticamente os recursos do Fundo. Aprofundou-se na administração Marchezan (2017-2020), que em 2017 e 2019 não executou um centavo sequer, embora o Orçamento lhe destinasse mais de um milhão ao ano. Frustrada a tentativa de extingui-lo, deixou o Orçamento zerado para Melo, que recém em 2022 voltou a movimentar o Fundo.
O que os propagandistas do Estado mínimo, dominantes nas últimas gestões, parecem não ter percebido é que o funcionamento regular do Fumproarte ajudou a formar empreendedores para a elaboração e gestão de projetos. Longe de se contentarem com uma improvável benesse do Estado (afinal, a concorrência era grande e os recursos, disputados), eles aprenderam a captar recursos também de outras fontes, alavancando ainda mais a produção local. Em contraposição ao modelo clássico de ação cultural pública, exercida diretamente pelo Estado, em que os artistas contratados atuam em programas comandados por gestores públicos, o Fumproarte patrocinava iniciativas de cidadãos, selecionadas e executadas por cidadãos.
Prestações de contas eram cobradas com rigor, e raríssimos projetos não chegavam a termo. Além de invariavelmente custarem menos - por não arcarem com os custos fixos da máquina administrativa - , afastava-se o risco de escolhas orientadas ideologicamente, já que o Governo é minoritário na CAS. É fácil entender por que isso incomoda muitos políticos: raramente lhes rende agradecimentos pessoais (e, por consequência, votos). Por outro lado, quando um artista tem a oportunidade de agradecer apenas a uma instituição pública, sente-se vivendo num regime republicano, e isso não tem preço.
Chegaremos algum dia a reviver esses tempos áureos? Busquemos resposta no programa Mais Cultura, anunciado em 15 de setembro com a promessa de distribuir R$ 3,8 milhões pelo Fumproarte, por meio de quatro editais. Somado esse valor ao de dois outros, já lançados, chega-se a R$ 5 milhões, montante que seria (segundo o prefeito) “o maior da história”. Considerando que o Orçamento deste ano só destinou ao Fumproarte a metade disso, pairam dúvidas sobre o suposto recorde. Pode-se especular que o restante viria do Orçamento do ano que vem, ainda não votado pela Câmara, mas nesse caso não teria sentido comparar o Orçamento de qualquer ano anterior com a soma dos de 2023 e 2024. O certo é que o valor previsto para o Fumproarte para este ano corresponde a 0,024% do Orçamento total da prefeitura (que é de R$ 10,5 bilhões). Embora esse percentual seja o maior desde 2016, ainda é um dos mais baixos da história; e cerca de um quarto do que se investiu anualmente, nos 15 primeiros anos.
Mas nem todos os valores expressam-se em cifrões: há também os democráticos, sob constante risco. Como vimos, a Lei atribuiu à CAS a competência de decidir sobre os projetos a serem contemplados pelo Fumproarte. Contudo, no afã de patrocinar suas próprias políticas o Poder Executivo atropela essa competência e direciona recursos por meio de editais exclusivos para certos tipos de manifestações culturais. O maior dos editais lançados em setembro, por exemplo, destina-se a patrocinar “desfiles oficiais do Carnaval de 2024”. A Lei veda o patrocínio de projetos oriundos do poder público, até porque a Prefeitura já dispõe do Funcultura, criado juntamente com a SMC para arcar com as ações próprias desse órgão. Além disso, os editais agora vedam a participação de pessoas físicas, o que não ocorria no passado e não encontra amparo na Lei ou em sua regulamentação. Por fim, outra surpreendente “novidade” consiste em transferir para o secretário da cultura a decisão final sobre o julgamento dos projetos, caso os proponentes decidam recorrer das decisões da CAS (que anteriormente não admitiam recurso).
Pesquisas mostram que em média os trabalhadores da cultura (ou “criativos”) possuem maior escolaridade do que os demais, mas daí não decorre necessariamente, como sabemos, maior conhecimento sobre ou maior apreço pelas instituições democráticas. Ao longo do corrente ano, quando se multiplicou a demanda pelos recursos incentivados do Pró-Cultura RS, multiplicaram-se também manifestações públicas de desapreço pelo Conselho Estadual de Cultura, que ao contrário da CAS, criada com essa finalidade exclusiva, suporta resignadamente o fardo que lhe deram, de avaliar projetos. A maior parte das críticas, porém, origina-se da simples frustração do autor pela não aprovação de um projeto, raramente havendo a vontade de compreender o funcionamento do sistema, ou a humildade de considerar que os projetos selecionados também possam ter méritos. À luz da trajetória do Fumproarte ao longo de três décadas, esses fatos não prenunciam nenhum retorno aos “bons tempos”. Não tão cedo, ao menos. Talvez daqui a 30 anos.
* Autor: Álvaro Santi é poeta e músico. Ex-servidor da Secretaria de Cultura de Porto Alegre.