Há 100 anos, nascia Johnny Hartman, o cantor do romantismo "cool"

Há 100 anos, nascia Johnny Hartman, o cantor do romantismo "cool"

Carreira do artista teve altos e baixos e pelo menos dois pontos luminosos

Eduardo Rodrigues *

A trajetória de John Maurice Hartman, nome de batismo, foi igual à de outros negros com um tesouro na garganta

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Na segunda-feira, 3 de julho, uma efeméride do Jazz passará em silêncio, no mais cruel anonimato como tantas outras. Sem alarde, sem audições comentadas, sem vigílias com velas, sem rosários nem orações. Assim será o centenário de nascimento do cantor Johnny Hartman (1923-1983), o Sinatra negro. Não se ouvirão baterias de fogos nem chefes de Estado decretando feriado nacional em sua homenagem. Para quem foi ignorado em vida, permanecer esquecido após a morte é quase tão óbvio quanto dizer que o dia sucede a noite. Mas aqui ele será lembrado e elogiado, como devem ser aqueles que realizam obras de valor.

A trajetória de John Maurice Hartman, seu nome de batismo, foi igual à de outros negros com um tesouro na garganta. Nascido em Louisiana e criado em Chicago, Hartman começou a cantar aos oito anos na Igreja Batista, acompanhado ao piano por Ruth Lee Jones, conhecida posteriormente como Dinah Washington. Depois frequentou escolas de música, cantou como soldado nos serviços especiais do Exército durante a Segunda Guerra e, em 1946, venceu um concurso de canto no mítico Apollo Theater, no Harlem, em Nova York. Se juntou ao pianista Earl Hines, passou pela Big Band de Dizzy Gillespie e trabalhou por curto período com Erroll Garner antes de iniciar voo solo. Em 1955, fez relativo sucesso ao gravar o primeiro disco, Songs From the Heart, para a Bethlehem Records. Pela primeira vez, sua voz de barítono e seu estilo romântico e suave de interpretar baladas chamavam a atenção de críticos exigentes e ouvintes seletivos. O timbre grave e cheio, a dicção impecável e a entonação perfeita faziam as canções parecerem ternas e profundas ao mesmo tempo. Delicadeza que soava incrível naquele vozeirão.

"Não há nada que você possa fazer com uma boa música a não ser cantá-la... frasear é como falar. Acho que você deveria cantar como fala. Se você fizer isso, a música sai bem", ensinou o crooner. 

Sua carreira teve altos e baixos e pelo menos dois pontos luminosos, sem no entanto atingir o apogeu, comprovando a sentença mais famosa de F. Scott Fitzgerald, que dizia não existir segundo ato nas vidas americanas. No meio do primeiro, em 1963, bem depois de as cortinas terem levantado, Hartman experimentou a glória passageira. Ao morrer, 20 anos depois, estava pobre e esquecido. Passou da ascensão à invisibilidade sem experimentar o auge. Seu primeiro flerte com a redenção ocorreu ao gravar o disco com o saxofonista John Coltrane, a convite deste, classificado pelo crítico Will Friedwald como o “Kind of Blue” do Jazz Vocal, algo como dizer que a Constituição Americana tem o peso das Sagradas Escrituras e a perenidade dos Dez Mandamentos.

O clássico "John Coltrane and Johnny Hartman", gravado 60 anos atrás, vitaminou seu nome, abrindo as portas da gravadora Impulse Records para que ele gravasse outros quatro álbuns, com o mesmo padrão de qualidade, mas sem a excelência alcançada com a parceria de um dos grandes saxofonistas do século 20. A segunda tentativa de redenção aconteceu em 1995, quando Clint Eastwood incluiu quatro gravações do cantor na trilha do filme As Pontes de Madison, em que contracena com Meryl Streep, provocando uma corrida às lojas de discos. Da noite para o dia, as canções de Hartman voltaram a tocar no rádio, e seus discos foram reeditados, para alegria de músicos, que sempre o respeitaram, e de fãs que nunca deixaram de ouvi-lo.

Apesar disso, seguiu sendo privilégio de poucos por culpa da indústria fonográfica, que preferiu apostar em talentos duvidosos. Nas décadas de 60 e 70, cantores românticos como ele também perderam espaço para artistas de outros gêneros musicais, como o Rock e o Soul. Hartman continuou fazendo shows em pequenos clubes, gravando no Japão e se apresentando em programas de TV até ser acometido pelo câncer de pulmão que calou uma das vozes mais bonitas do Jazz e da música popular. Morreu em 1983, aos 60 anos, sem conquistar o lugar merecido. Seu enterro foi pago por Frank Sinatra, admirador confesso do cantor que, em vida, fora chamado de… Sinatra negro — maior elogio que um artista que usou as cordas vocais para espalhar belezas poderia receber. Ouça esse cantor. Sua voz de barítono parece ecoar do átrio de uma igreja à espera de casais que atravessem a rua de mãos dadas.

* Jornalista e escritor. 

PRINCIPAIS DISCOS

"Songs From the Heart"
— 1956 — Bethlehem Records

"And I Thought About You"
— 1959 — Royal Roost

"John Coltrane and Johnny
Hartman" — 1963 — Impulse Records

"I Just Dropped By to Say Hello"
— 1964 — Impulse Records

"The Voice That Is!"
— 1964 — Impulse Records

"Unforgettable"
— 1966 — Impulse Records

"For Trane"
— 1972 — Blue Note
Records

 


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