Há 150 anos, nascia Santos Dumont

Há 150 anos, nascia Santos Dumont

Alcy Cheuiche *

"- Alberto Santos Dumont... um nome bonito. Só não sei se tem santo com nome de Alberto..."

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Serra da Mantiqueira, Província de Minas Gerais, 20/7/1873

 

A locomotiva avançava rapidamente no trecho em declive. Rolos de fumaça esbranquiçada subiam da chaminé e eram espalhados pelo vento. O maquinista ergueu o braço esquerdo e acionou o apito em longos silvos plangentes. O gado que atravessava os trilhos agitou-se e correu em várias direções. E a máquina fumacenta foi-se morro acima, perseguida pelos braços erguidos e pelos palavrões dos vaqueiros.

Lá no alto, onde terminavam os trilhos, um homem de estatura baixa e ombros largos olhava a cena com desagrado. Naquele lugar deserto, estava vestido como um cavalheiro. Botas e culotes de montaria. Casaco comprido, abotoado até o pescoço. Um quepe puxado sobre os olhos. A barba castanha, começando a ficar grisalha, cobria-lhe quase todo o rosto queimado de sol. Os olhos desviaram-se da locomotiva e fixaram-se no rosto do negro alto e grisalho, vestindo um macacão azul desbotado.

- Que loucura deu nessa gente, Damião? Para que todos esses apitos?
- Sei não senhor. Mas deve ser coisa de fundamento.
- Melhor para eles se for.

Damião ia dizer alguma coisa, mas calou-se com a chegada da locomotiva. O maquinista desligou a máquina, tirou o boné encardido e respondeu à pergunta formulada por dois olhos duros.

- Seu engenheiro, desculpe a correria, mas é que...
a Dona Francisca, ela... acho que tá ganhando filho. Tá, sim senhor.
Por alguns momentos, o homem barbudo ficou atônito. Foi o escravo que falou com voz serena:
- A Patroa tá ganhando ou já ganhou?
- Não sei direito. Foi a Siá Ordália que nos disse para deixar a carga e vir correndo avisar o patrão.
O engenheiro olhou para o escravo.
- Ainda bem que a tua mulher estava prevenida. Só ela achava que a criança ia nascer antes do fim do mês. 

Damião sorriu com bons dentes.

- A minha Ordália não nega fogo. Parteira melhor que ela não tem nem em Barbacena, não senhor.
O engenheiro concordou, apressado.
- Eu vou para Cabangu agora mesmo.

E, saltando agilmente para o interior da locomotiva, ocupou o lugar do maquinista. Verificou os controles, sacudindo a cabeça várias vezes.

- Tudo bem. Não precisa botar lenha até que eu mande.

Por alguns momentos, bordejaram um precipício, a máquina a poucos palmos do paredão de pedras. Logo depois, o foguista pegou de junto da fornalha uma caneca de metal polido e a ofereceu ao engenheiro.

- O senhor quer um pouco de café? Foi Siá Ordália que mandou pro senhor.

O patrão hesitou antes de espichar a mão enluvada. Bebeu um gole com cuidado e sorriu. Café recém-torrado, bem forte e doce, como eu gosto. Até que não posso me queixar do meu pessoal. Todo mundo disse em Ouro Preto que era uma loucura contratar este trecho da estrada. Mas estou quase terminando e não vou ter prejuízo. Nesta curva, a inclinação está exata. E como eu detestava as aulas de cálculo. Mas o velho Monsieur Lagrange é que estava certo: “Un centimètre de plus ou un centimètre de moins et vous voilà jeté dans la merde!”. É isso mesmo, um centímetro de erro no cálculo e o trem cai num precipício, como esse aí. E o engenheiro cai no opróbio e na miséria. Velho desbocado, mas muito sabido. E como dá prazer ver as coisas bem feitas... Não posso me esquecer de fazer um agrado à Siá Ordália. Nas mãos dela, Francisca já ganhou cinco filhos sem nenhum problema. Tomara que ela esteja bem e o nenê seja homem. Quem diria que fosse nascer logo no dia de hoje, no meu aniversário... E dez dias antes do prazo que o doutor Cintra calculou. Bem se vê que ele não é engenheiro. Se fosse, dava com os burros n’água.

Aproximavam-se do povoado. Após a subida em forma de ferradura, desligou a máquina e acionou os freios. Como um grande animal domesticado, a locomotiva parou exatamente onde ele queria. Bem ao lado de um letreiro bem desenhado com tinta preta: APEADEIRO DE JOÃO AIRES.

Na casa do sítio Cabangu, construção modesta, tudo parecia sem novidades. No quarto do casal, deitada na cama de guarda alta, Francisca dormia serenamente. Seus cabelos negros, entremeados de alguns fios brancos, espalhavam-se sobre os travesseiros. Um braseiro mantinha o calor, abanado de quando em quando por uma escrava sentada no assoalho. Outra negra vestida de branco, de busto farto e cadeiras largas, estava de pé ao lado do berço de vime. Num rápido olhar, o marido percebeu que tudo estava em paz. Fechou cuidadosamente a porta e avançou para a cama. A escrava junto do braseiro levantou-se imediatamente. A outra barrou o passo do homem com seu corpo avantajado. Colocou o indicador sobre a boca, mas era tarde demais. A mulher agitou-se na cama e abriu os olhos sonolentos.

- É você, Henrique? Graças a Deus.

O engenheiro ergueu as sobrancelhas para a negra, que lhe deu caminho, resmungando.

- Agora que acordou ela, pode ir. Mas não fale alto. Faz pouco que o nenê sussegô.
- Ele... é bem normal, Siá Ordália?
- Tem tudinho nos conforme. A Sinhá Francisca também se dislivrô direitinho, pode ficá descansado.

E voltando-se para a escrava que cuidava do braseiro.

- Vancê pode espera lá fora. Melhor ainda, dá uma olhada se as criança tão bem. Tá na hora do mamá da Gabriela. O anjinho só tem dois ano e já tem outro aí no berço.
Acostumando os olhos à obscuridade, Henrique avançou até junto da esposa. 
- Muito obrigado pelo presente de aniversário. 

Um lindo sorriso aluminou o rosto cansado de Francisca.

- Que bom, não é, amor? E foi ele quem quis nascer hoje, vinte de julho. Fiquei tão feliz.
- Vamos comemorar juntos todos os anos. 
Francisca ergueu o busto com dificuldade.
- Siá Ordália, por favor, traga o nenê para mim. Eu quero... Você sabe o que eu quero.
Sem obedecer à ordem, a parteira limitou-se a acomodar os travesseiros nas costas da patroa.
- Sô Henrique, a Sinhazinha botou na cabeça... Minha Nossa Senhora... Eu tive um trabalhão pra consegui um negra-mina bem forte e sadia pra dá de mamá pro nenê. Mas quem sabe é a Sinhá... 
Henrique e Francisca trocaram um sorriso cúmplice, e o engenheiro falou com autoridade:
- Pode dispensar a ama de leite, que a Francisca vai amamentar o menino. Na França, todas as mães amamentam sem problema, eu já disse a você.

Ordália não se mostrou impressionada.

- É, mas aqui não é na França e a Sinhazinha já tem quase quarenta ano. Se dispois ela enfraquece e tem uma tísica, a culpa não é minha.

Henrique olhou para a esposa em busca de auxílio. Francisca falou com voz tranquila:

- Dê cá o nenê, Siá Ordália. Deixe que eu acerte esse assunto com o meu marido. 
- Sua alma, sua palma. Tá aqui o anjinho.

E, colocando cuidadosamente o nenê nos braços da mãe, saiu do quanto com a cabeça erguida.

Henrique fitou Francisca com ternura.
- Será que ela não tem razão?
- Nós já discutimos isso, amor. A escravatura não vai durar para sempre no Brasil. Se as mulheres negras podem amamentar seus filhos e os nossos, eu também poderei. Sonho com isso há dezesseis anos, desde que nosso primeiro filho nasceu. 
- Está bem, querida. Você acha que tem bastante leite?
Francisca baixou os olhos e apalpou o busto com a mão espalmada.
- Está doendo. Mas dá para esperar mais um pouco. Siá Ordalha já encheu o bichinho de açúcar e água fervida.
Henrique roçou a ponta do indicador na testa minúscula da criança.
- É bom escolher logo o nome dele. 
- Nós combinamos que, se fosse homem, a escolha era sua.
Henrique coçou a barba do queixo.
- Quando vinha para cá, pensei muito no meu velho professor de engenharia, em Paris, Monsieur Lagrange. Graças ao que aprendi com ele, estou me saindo bem com este trecho da ferrovia.
- Pois vamos botar o nome do teu professor. Afinal, o menino nasceu pertinho da estrada de ferro.
- Acho que o primeiro nome dele é Albert.
- Alberto Santos Dumont... um nome bonito. Só não sei se tem santo com nome de Alberto. Dá uma olhada no Larousse, querido.
- Agora?!
- Por que não?

Henrique ergueu-se e caminhou até a estante de livros. Correu os dedos com prazer sobre os grossos volumes da enciclopédia, extraiu o primeiro da fila e abriu-o junto à imagem barroca de Nossa Senhora, iluminada pela vela votiva. 

- Tem Albert que não acaba neste Larousse. Reis, duques e bispos... Deixa ver, acho que está aqui: Santo Alberto, o Grande. Pronto, podemos batizar o menino sem medo.

E fechou o livro com estrondo, quase apagando a chama da vela. Alberto começou a chorar, desta vez com mais força. Francisca aconchegou-o contra o peito.

- Você podia ter lido um pouco mais sobre o santo.
- Para que? Santo é sempre bom. E esse Santo Alberto, o Larousse diz que foi professor de São Thomás de Aquino. Assim, homenageamos dois professores ao mesmo tempo.
Francisca desbotoou a camisola e expôs o seio esquerdo, mantendo- firme sob a mão direita.
- Alberto, meu pequenino, agora ajuda um pouco a mamãe. Se você mamar, eu prometo que nunca vai ser fraco... Meu peito está enorme, Henrique. Mas ele está pegando, acho que está pegando. Ai! Como dói! Ele está mamando. Henrique! Finalmente eu consegui, graças a Deus.

* Escritor. Autor de "Nos Céus de Paris - um Romance da Vida de Santos Dumont"


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895