Humanas Regionalidades

Humanas Regionalidades

José Eduardo Degrazia *

'É descabida a noção de tratar de regionalismo tudo o que não é urbano, ou pior ainda, tudo o que não venha dos regionalismos do Rio de Janeiro e de São Paulo'

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Tende-se a ver o regional como expressão da singularidade do homem não urbano, habitante dos grotões do Brasil. Dizem ser regionalismo o que, na verdade, é realismo. A diferença não está tanto na valorização dos costumes e da geografia, a dita cor local – todos são humanos na mesma medida –, mas na enunciação radical dessas singularidades, ou melhor dizendo, dessas humanidades. É descabida a noção de tratar de regionalismo tudo o que não é urbano, ou pior ainda, tudo o que não venha dos regionalismos do Rio de Janeiro e de São Paulo. Quando a humanidade dos personagens transcende o meio em que vivem, torna-se imagem de todas as humanidades. Realismo, no final das contas.

A questão da linguagem é outro problema a ser encarado. No Brasil, ao se ler um autor carioca com suas gírias e expressões típicas, ou um nordestino com sua fala característica, precisamos, muitas vezes consultar o dicionário; assim como leitores de outras regiões têm de usá-lo quando leem autores do Rio Grande do Sul. Não é a linguagem, por si só, que caracteriza o habitante de uma dada região, mas seu comportamento na ação, que é o que, definitivamente, o humaniza em sua singularidade. 

Faço essas observações para falar do livro de Paulo Mendes, “Campereadas: O bolicheiro nunca morre” (1). Trata-se de um livro de crônicas que aborda a memória possível, a vivência de quem teve a infância e parte da adolescência na interface do campo, no bolicho da beira da estrada. Não sendo nem estancieiro, nem peão, tem um lugar privilegiado de observação para o mundo que o cerca; tem os olhos e os ouvidos abertos para os usos e costumes do povo campeiro, dos carreteiros, dos carroceiros, dos pequenos comerciantes das periferias das cidades pequenas e das bordas das estâncias. Essa foi, também, a experiência de Cyro Martins, que norteou toda a sua literatura de contexto regional. Assim nos diz Antônio Hohlfeldt, no livro “Múltiplas Leituras” (2), organizado por Solange Medina Ketzer, Maria Eunice Moreira, e Maria Helena Martins: “É que Cyro sempre viveu no ambiente da bodega (comércio). Ora, a bodega não estava nem dentro nem fora do universo da estância: ela se encontrava num território à parte, que é o corredor, que ligava e unia as duas realidades, a rural e a citadina.” (p. 13). Não quero aqui, com isso, dizer que existe similaridade nas obras desses dois autores, mas acentuar que as influências que tiveram forjaram narrativas que tiveram a mesma base, a mesma matriz.


Os personagens do campo são a matéria dessas observações privilegiadas. Uma visão saudosista e carregada de sentimento pelos mais pobres; no entra e sai desses homens, no bolicho da família, calejados pelas lides campeiras, vêm as vidas, os causos, os ensinamentos de todo o tipo: “O bolicho ficava à beira da estrada real. Era caminho e todos sabem que é pelos caminhos que andam os destinos. Essa estrada levava ao frigorífico de Vila Rica e, por isso, por ali passavam as tropas de gado que eram tangidas para o abate. Algumas eram de perto, outras de longe.” (p. 51). Quantas histórias os homens que tangiam essas boiadas não traziam para os ouvidos do guri atento? Aprendizados para toda a vida: “Isso, aprendi por detrás do balcão de um bolicho, no meio de gente xucra, mas de conversa clara e reta, sem meias palavras, sem hipocrisia, ironia ou mentira.” (p. 81).
As crônicas se transformam em causos e contos conforme a necessidade da narrativa, trazendo sempre presentes a memória e a fabulação de sabor regional campeiro, mesmo sendo a linguagem usada a da comunicação mais ampla, para ser lida por assinantes do jornal onde são publicadas, isso é, com poucas palavras atinentes aos hábitos e fainas locais. O autor contesta quem reduz, ou tenta diminuir esse tipo de literatura: “Por isso, certa vez, lamentei ao ouvir que as ‘Campereadas’ eram ‘causos de galpão’, como se causo e galpão diminuíssem a minha literatura. Então o regionalismo e galpão não importam para a cultura?”. (p. 81). Importam sim, é claro, em diferentes dimensões e intensidades, com quadros ora românticos ora realistas, que passam por Simões Lopes Neto, Cyro Martins, Sergio Faraco e tantos outros ficcionistas e poetas que usaram em parte de suas obras ou na sua totalidade, temas regionais para esclarecer a nossa realidade.


Esse menino que cresceu no corredor, ajudando a servir aquela pequena humanidade composta de posteiros, biscateiros, vaqueanos, gaúchos de lides e fainas campeiras, tornou-se escritor, e, como ele próprio diz, “um tropeiro de palavras”. (p.26). Foi para a cidade grande com os olhos carregados pelas paisagens, e o coração repleto de cenas e figuras que no aconchego do bolicho vivem suas vidas cheias de altos e baixos, sempre toureando a pobreza. Por isso, o autor diz: “Eu já disse há muito tempo e agora repito, escrevo para os que não têm voz, não têm nome, nunca dão entrevistas, não aparecem nos jornais, não falam em rádio. São anônimos, são aqueles que todos pensam não ter importância. Mas rogo-lhes outra vez, não os maltratem, olhem para eles como pessoas em busca de uma oportunidade, pois estão estropiados de corpo e alma.” (p.30).


Essa identificação com os sofredores, com os abandonados, com os ofendidos, faz de Paulo Mendes um autor ao mesmo tempo social e lírico. Social pela paisagem humana que pinta com tinta a óleo, e lírico pelas belezas do campo que esboça em aquarelas sensíveis. Essas paisagens, no entanto, são interiores, vivem apenas na memória daquele guri de bolicho de beira de estrada. “Mas as flores das margaridas e das ervas campeiras procuram minha boca para cantar e eu volto à minha infância para sentir o cheiro do sol.” (p. 49). O autor, assim, reencontra o que de mais puro traz nas suas memórias, e, de quebra, ainda consegue nos emocionar com suas histórias. Ao nos emocionar faz reverberar em cada um de nós – mesmo naqueles que nunca viveram no interior –, aquele cheiro de sol. 


REFERÊNCIAS
(1) MENDES, Paulo. Campereadas: o bolicheiro nunca morre, Ed. Sulina, Porto Alegre, 2019.
(2) HOHLFELDT, Antônio. In Múltiplas Leituras, EdipucRS, Porto Alegre, 2008.

 

* Médico, tradutor e escritor. 


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895