Iberê Camargo: Um Homem Valente

Iberê Camargo: Um Homem Valente

Nilma Lacerda *

Obra de Theo Felizzola que ilustra a capa do livro “Iberê Camargo - Um Homem Valente", de Nilma Lacerda

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O CS publica um excerto de “Iberê Camargo: Um Homem Valente”, romance inspirado em vida e obra do grande pintor nascido em Restinga Seca. Escrita pela carioca Nilma Lacerda e lançada em novembro pela editora Mínimo Múltiplo, esta narrativa de “fricção” (atrito entre invenção e realidade) é o volume inaugural da Tipos Raros, coleção que pretende ainda homenagear outros três artistas e intelectuais brasileiros que se caracterizaram pela dissonância, pela insubmissão ao senso comum.

Excerto do capítulo Oito

“A primeira vez que senti a ação da divindade em mim foi quando tive minha primeira tinta, feita de modo rudimentar e à maneira dos grandes mestres. Um passageiro chegou fora de horas a Restinga Seca. Teria que amargar uma noite inteira e parte da manhã na espera do trem seguinte. Estava doente, e seguia ansioso em busca de alguém. Meus pais se condoeram de seu desalento, ofereceram o pernoite, que ele aceitou. O homem não era simpático e sofria. Eu o olhava de soslaio.

Depois da sopa e do prato de carne, ele se ensimesmou, enfiando a cabeça entre os braços cruzados sobre os joelhos. Desenhando no chão, eu espiava para ele. De repente, levantou a cabeça, disse: – Vou pagar minha hospedagem. Vamos comigo lá fora. Tenho um presente para ti.
Tive um pouco de medo, olhei para minha mãe, que costurava debaixo da luz fraca. Ela me fez um sinal encorajador. 

– Aqui – disse e pediu a lata vazia que eu levava a mando dele. Raspou com a pá que eu também levava, botou um tanto de terra na lata.


– Olha só como é amarela, mostrou. Era mesmo amarela, aquela terra farinhenta. Andamos de volta para perto da casa, onde entrei de mansinho para surrupiar uma peneira da cozinha. Fomos para debaixo da lâmpada da estação, em frente da casa. Peneiramos a terra muitas e muitas vezes, deixando cair dentro de outra lata um pó cada vez mais fino. Quando o pó era tão fino, uma nuvem amarela caindo dentro da lata, o homem disse, já está bom, vamos lá dentro pedir um ovo à sua mãe. Levei um susto, ovo é uma coisa que a gente respeita, não gasta à toa, para que esse homem quer um ovo, não é para comer.


– Não, não é para comer, ele disse à minha mãe. – O seu jantar foi bom, obrigado. É para dar o presente ao garoto.


Minha mãe olhou enviesado: presente com nosso ovo?


E deu o ovo. Acho que deu aquele ovo contra tudo que ela pensava, e escolheu para dar o ovo mais gordo, da casca mais lisa e mais cor de casca de ovo vermelho que havia na cesta. O homem nem disse obrigado, pediu também duas xícaras e arrumou tudo, o ovo, a lata com o pó fino, uma xícara e a outra, em cima da mesa. Quebrou o ovo na beirada da mesa, escorreu a clara para uma das xícaras, ficou com a gema na mão. 


– Me arruma um pires.


Que homem mais pedinchão, pensei, sempre lembrando de mais alguma coisa que quer, e aproveita traz uma faquinha, e não precisa mais nada, disse.


Derrubou um pouco de gema no pires, botou em cima um pouco do pó da terra, mexeu com todo o cuidado, bem devagar. Botou mais gema e mais pó. Mexeu e mexeu. Olhou para a pasta amarela no pires, botou ainda mais um pouco de pó, mexeu de novo.


– Vai pegar um papel, ele disse. E quando cheguei com um papel cor de areia queimada, ele pegou o meu dedo, mergulhou na mistura de pó e de ovo, passou na folha de papel.


– Sentiu? É tinta. Agora vai buscar um pincel para você.


Como é que ia ter um pincel ali naquele lugar perdido, em que se podia esperar como aquele homem, uma noite inteira e uma manhã, às vezes mais, por um trem? Acontece que tinha. Tinha uma brocha velha, jogada num galpão de materiais, nos fundos da estação. Eu sabia que tinha porque vi o meu pai jogar lá, depois de uma caiação nas paredes. Voltei com a brocha, o homem riu, até então não tinha rido. Puxou um canivete e um barbante fino do bolso do paletó, e com uma habilidade que nunca mais encontrei pela vida afora transformou a brocha grosseira num pincel quase delicado.


– Agora sim – e me entregou o que nos meus poucos anos eu não sabia direito o que era, e sabia que devia ser uma coisa definitiva. – É teu. Usa.


Molhei o pincel na tinta amarela, passei no papel. Não era felicidade, e era uma coisa extraordinária que estava acontecendo na minha vida. Molhei de novo o pincel na tinta, passei no papel e o sol bateu no chão da campanha, o grão de milho chamou a galinha pro cocho. O amarelo da saia mais bonita da minha mãe e da cor da luz no lampião quando tem óleo novo, esse amarelo corria macio no papel, com ele eu podia representar tudo o que via amarelo, que presente o homem havia me dado.
Pintei até encontrar de novo o branco polido do pires. Meu coração ia aos pinotes, a mão campeava firme o papel. Virei para dizer obrigado ao homem, sabendo que obrigado era pouco. O homem já estava dormindo, deitado na cama de armar que meus pais tinham para essas eventualidades. Não ousei incomodá-lo.

O susto da primeira têmpera! O susto com a revelação de que se é capaz de pintar. O susto de um dia não ser mais capaz de pintar. Essa revelação que é como o nome da gente dito uma segunda vez, uma segunda vez e mais claro do que a primeira: a gente sabendo para o que é que a gente está no mundo. A gente sabendo que tem um destino, um destino e não só uma vida, não só um ciclo biológico, uma tarefa social: nascer, crescer, estudar, conseguir um emprego, casar, ter filhos, ser respeitável, ficar velho, morrer. Não. Para muito mais a vida nos é dada. Precisamos fazer muito mais do tempo que nos é dado, das obrigações que damos a nós mesmos como uma camisa de força que a humanidade foi inventando e aperfeiçoando a cada nova revolução. Nascer, e pintar!”

* Doutora em Letras. 


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895