Instruções para entender Paulo Bentancur

Instruções para entender Paulo Bentancur

Jéferson Assumção*

Escritor, crítico literário e editor gaúcho morto em 28 de agosto de 2016

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Neste domingo, dia 28 de agosto, completam-se seis anos da morte de Paulo Bentancur (1957-2016). Escritor e crítico prolífico, com quase 20 livros e dezenas de artigos publicados em jornais do Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e São Paulo, Bentancur, além de grande ficcionista, foi um intelectual atento, brutalmente honesto, muitas vezes polêmico. 

Bentancur pertence a um tipo fundamental da nossa cultura. Nascido no interior, em uma família humilde de Santana do Livramento, tinha o amor admirado que certos pobres têm pela literatura quando conseguem aceder a ela. Algo bem distinto dos bem-nascidos, polidos e educados desde o berço até a universidade – que ele não fez – cuja relação é mediada pela incredulidade metódica e a descrença profissional.

Paulo foi um migrante, mas não só dos que ousam sair do campo e da pobreza para tentar vencer na Capital, a Porto Alegre que ele amou. Foi um migrante por dentro da cultura e da literatura. Ao ser salvo, desenvolveu, ao lado do enorme talento, o exagero e a inabilidade própria dos fanáticos. Para Bentancur a literatura se assemelhava a uma religião, talvez a única possível. Uma religião, com seus santos e deuses, sua e de quase mais ninguém, num amor que comoveu a todos os que conviveram com ele. “O mundo é um suporte para a literatura”, ele dizia. “O que eu sinto pela literatura? Gratidão”, resumia na forma quase mística. Afetava a todos seu exagerado amor pela arte, cujas formas sempre foram vistas com distância e respeito, ou seja, pelo lado de fora, admirada, autodidata, talvez a mais rica e livre forma de se relacionar com ela.
Premiado quatro vezes com o Açorianos de Literatura, Paulo Bentancur foi autor de diversos livros de contos, ensaios, poesia e literatura infantojuvenil, além de atuar na Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas (Corag), editar a revista Vox XXI e de ter sido coordenador de livro e literatura da Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre. Quando em 2000 fez parte do inovador projeto “Os livros invisíveis”, pioneiro do e-book no Brasil, pela 00h00, de Paris, França, Luiz Antonio de Assis Brasil assim definiu seu trabalho: “Paulo Bentancur percorre um caminho em que nada fica por dizer. Não abdicando de sólidas opiniões, quase sempre contrastantes com as da maioria – e eis aí uma virtude em tempos uniformes”. 

Grande frasista, autor de pérolas como “Paulo Bentancur tem 35 anos, mas já foi mais velho”, Bentancur abre esse mesmo livro com uma epígrafe típica de quem amou a literatura e professou uma vocação vertiginosa: “Para todos aqueles que não saberiam viver sem um livro”. Na orelha de “A Solidão do Diabo” (Bertrand Brasil, 2006), o crítico José Castelo escreveu: “São tensos e sábios os relatos de Paulo Bentancur. Eles se norteiam pela atração do abismo, mas nem por isso perdem contato com a vida. Contos sobre miudezas que se revelam monstruosas. Ou sobre graves temores que se mostram inúteis ou ridículos”. 
Bentancur estreou em 1994, com “Instruções para iludir relógios” (Artes e ofícios), peça de influência cortazariana, de literatura potencial, que tanto o estimulou. O livro levou o Açorianos como um “livro sem gênero”. Poético e calculado, mistura cronópica de conto e poesia. Em um de seus últimos livros “Bodas de Osso”, faz o caminho contrário, da poesia para a crônica e o conto. 

Portas de saída. Uma vez ouvi da Regina Bentancur, irmã do Paulo, a seguinte frase: “ele não nos deixa portas de saída”. Bentancur era leitor de Emil Cioran (1911-1995), o impressionante autor de “Breviário da decomposição”, entre tantos outros livros de revirar o estômago de tão fundos e sem rotas de fuga. Como o filósofo romeno, Bentancur professava, tanto na escrita quanto em suas conversas, certa crueza elegante e melancolia sem desespero em relação ao mundo. Daria até pra dizer que sentia um prazer intelectual diante das sinucas de bico metafísicas com as quais se deparava e em relação às quais coagulava seus pontos de vista. 

Em sua cruzada contra o cabotinismo, o intelectualismo, o academicismo, foi o defensor da Literatura, assim mesmo, com L maiúsculo, contra os que considerava oportunistas. Aí é que está: o Bentancur interessado nos mais fracos e simples, nos “mimosos”, como ele se referia a pessoas de seu convívio ou de quem ele se aproximava. Tinha um autêntico interesse na conversa com qualquer um: porteiros, motoristas, cozinheiros, zeladores, entregadores de pizza, caixas de supermercado. Tagarela, quase não permitia o silêncio. Comentarista sem freios do pequeno e do cotidiano, como algum resultado do jogo do Inter (que ele dizia não poder ver ao vivo porque lhe aumentava em muito a ansiedade). A matraca ligada com o interlocutor e com quem o rodeasse. O interesse vivo e espantado pelo que não compreendia do mundo comum. 

Por outro lado, o crítico e intelectual sem papas na língua contra gente grande. Um olhar humano para os mais simples; quase um inferno para os artistas que ele considerava indignos de seu mundo. Mas, com toda a contradição dos grandes escritores, apagava os incensos falsos, acendia outros às vezes não tão autênticos. Era generoso com os curiosos, com os quem, na opinião dele, podiam servir ao seu exército na defesa da literatura contra os falsários e os fingidores. Para servir em suas colunas, era preciso ler I.A. Richards, Ezra Pound, Otto Maria Carpeaux, W.H. Auden, Flaubert, Nabokov, Cortázar, Borges, Maupassant, Tchekhov. Seu anti-intelectualismo pode ser resumido na seguinte frase, muitas vezes ouvida por mim: “Quem pensa, não escreve. Pra escrever tem que ser meio burro”. “Benta” sendo “Benta”. 

* Escritor, doutor em Filosofia, professor de Escrita Criativa na www.quadroamarelo.com.br


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