Lídia Jorge: uma das grandes escritoras contemporâneas

Lídia Jorge: uma das grandes escritoras contemporâneas

Escritora e professora da Ufrgs, Jane Tutikian, analisa a obra de uma das maiores autoras de Portugal na atualidade que estará presente na Feira de Buenos Aires, a partir do dia 25

Correio do Povo

Escritora portuguesa Lidia Jorge integra a delegação portuguesa na Feira do Livro de Buenos Aires, que tem início no dia 25 de abril

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O ano de 1974 representa uma ruptura na política portuguesa e na literatura. Achava-se que após a Revolução dos Cravos toda a geração de 50, que continuava atuante, como José Pires, Abelaira… todos eles abririam as suas gavetas e delas sairiam verdadeiras obras-primas. Isso, entretanto, não acontece. O que segue à Revolução é um espaço de silêncio. Para Eduardo Lourenço, aquela geração havia sonhado e mitificado a revolução que viria do povo. Como ela não acontece assim, e vem dos capitães, há um momento de perplexidade. Essa ideia é corroborada por Maria Seixo e mais: a censura havia sido tão forte e tão fechada durante o salazarismo que desenvolveu, nos escritores, uma espécie de autocensura.

A verdade é que o momento que se seguiu foi de silêncio e isso abre espaço para a entrada de uma outra geração: a Geração de Abril ou da Repensagem, a geração que estuda a história imediata portuguesa, que faz um balanço do salazarismo e de seus 48 anos no poder. É o momento de Teolinda Gersão, de Almeida Faria, do grande Lobo Antunes… E é o momento, especialmente, de Lídia Jorge, que vem surpreender o mundo literário. Em seu primeiro romance - “O dia dos prodígios”, de 1980 -, trabalha com uma grande alegoria, a trajetória que culmina no 25 de abril e a resistência ao fascismo. Veja-se a observação de Vergílio Ferreira diante do livro: “Lídia Jorge coloca o ‘dedo’ numa das feridas do modo de estar do português no mundo”.

Um pouco mais tarde, vai além, denunciando os resquícios na democracia em “Notícia da cidade silvestre”, de 1984. A revolução deveria ter produzido um homem harmonioso e de fato não produziu. O momento que segue ao fascismo é, em Portugal, marcado pela degradação em todos os níveis: político, social, interpessoal. O livro se passa em Lisboa, uma cidade que não oferece saída.

Segue-se uma literatura de desmitificação em “O cais das merendas”, de 82, onde desmitifica o grande mito português, tornando o protagonista, Sebastião, o herói dos verões. A crítica portuguesa reage no pensar de Maria Lepecki, que considera que Lídia Jorge traz consigo uma garra invulgar, e utiliza a mão pesada e cruel na releitura da História portuguesa. Ao tratar da África, “A costa dos murmúrios”, de 1988, adaptado para o cinema, desmitifica o Portugal como império conquistador.

E que História é essa que Lídia Jorge conta? Se o período anterior à Revolução caracteriza-se pela anestesia do povo, pelas injustiças sociais, pelo atraso econômico e cultural, pelo anacronismo autocrático e isolacionista de último império colonial do mundo ocidental e da mais antiga das três ditaduras da Europa não comunista, o período que o sucede é o da euforia revolucionária. Nela, Portugal tenta viver as décadas de história europeia de que se vira privado pelo regime ditatorial, e depara-se com as dificuldades do período crítico na construção da democracia, com o abandono do sonho imperial e a descolonização.

Em 1995, Lídia Jorge nos brinda com uma obra ímpar “O jardim sem limites”, um dos mais importantes livros da literatura Portuguesa do século XX, ao retratar a primeira geração depois da revolução. A década de 80, num panorama geral, revela-se como o período da grande ruptura, da derrocada ideológica do mundo comunista, e da restauração de um novo mapa geopolítico. Em Portugal, a modernização social, inclusive pela entrada na Europa, choca-se, por um lado, com crescentes dificuldades de uma sociedade dotada de liberdade civil antes da econômica, o que faz permanecer a desigualdade, e a desorganização social, e, de outro, com um certo provincianismo característico da terra. Culturalmente, a década de 80 traz consigo uma geração diferenciada, a primeira posterior ao 25 de abril. E, aqui, se encontra “O jardim sem limites”, cuja personagem central é o português da globalização e do multiculturalismo e o livro mais inquietante de Lídia Jorge.

Aí, a crise da sociedade e da civilização, vincula-se à história nacional e aos costumes do seu tempo, expressando o medo e a desconfiança. E o mito desmascara a degeneração e a deformidade do funcionamento social, e desvenda os princípios imutáveis localizados entre o cotidiano empírico e as mutações históricas, revisando criticamente o sistema como um todo. É como Lídia Jorge trabalha a mitologização para encaminhar à desmitologização, através de teses históricas dialeticamente pensada.

Ela joga um narrador no centro de um microcosmo de onde vai observar e narrar dois núcleos: o de 60 e o de 80. Historicamente gerações em confronto. A primeira, a da utopia, a do social, do coletivo. A segunda, afastada do 25 de Abril e das suas paixões, desconfiada do social, do coletivo, do ideológico. É narcisista, hedônica, individualista, colonizada por uma cultura midiática massificante.

Como não há possibilidade de recuperação do passado, e como não há valores históricos para colocar no seu lugar, as imagens nacionais produzidas são um nada, há, então, a busca da imagem nos mitos hollywoodianos. Quando os garotos assumem o nome dos artistas de cinema, e todos eles assumem, fazem a apropriação simbólica da identidade, da língua, do discurso e do comportamento do estrangeiro. É a escolha feita na cultura mosaico que tem à sua frente, mas também na imposição americana, desde os anos 50, de sua presença e da essência da sua cultura a todos os países tendo na indústria cinematográfica sua grande difusora. Ora, numa cultura colonizada, ser o outro é o mesmo que ser superior, logo, a imagem é superação do eu e submissão ao estereótipo. É a descrição metafórica de uma sociedade despreparada para o seu tempo, sem identidade e sem autoestima.

Quando se tenta transformar o feito do Static Man em um feito coletivo, é o coletivo que se abala pela recusa do recorde do estátua viva. É a questão da imobilidade portuguesa, da estagnação e do aprisionamento ao passado glorioso que, ao longo da sua história literária, vinha sendo tema recorrente. A imobilidade – tal qual se lê em O jardim sem limites – levada ao extremo, é a morte do Static Man quando bate o seu recorde de paralisação, é a morte de um povo, de uma cultura.

Compreender qual o sentido do homem neste específico tempo histórico, quando emerge a ideia pragmática de economia a determinar o mundo, quando, de fato, já não existem sistemas isolados, mas receptores de acontecimentos e posições ideológicas oriundos de vários centros de irradiação e, sobretudo os EUA, eis o que, aí, a autora propõe. Suas personagens são porta-vozes da contemporaneidade.

Com igual qualidade, são vários os livros que se seguem,- “O Vale da Paixão” (1998), “O Vento Assobiando nas Gruas” (2002), também adaptado para cinema, “Combateremos a Sombra”, (2007), reveladores de um estilo e de uma visão social fortemente individuados e nos colocam diante de uma obra que veio para ficar. Em 2011, é publicada uma edição brasileira de “A Noite das Mulheres Cantoras”, o desvendamento do funcionamento social é seu grande tema, além do talento narrativo da Lídia Jorge, que parece brincar com as palavras, as suas personagens saltam do livro, porque são feitas de alma, são reais em seus sentimentos, em suas esperanças e desesperanças como qualquer um de nós. A autora nos leva a percorrer a sociedade portuguesa do início do fim e início século.

Ler “A Noite das Mulheres Cantoras” é entrar no ambiente da música e das sensações, é entrar na psiquê humana das fortes Giselas, das frágeis Micaias, dos autoritários Simons, das formas, enfim, como se tecem as relações humanas. Tratando dos retornados, tema contundente na sociedade portuguesa, a narrativa, um monólogo da protagonista Solange de Matos, conta a trajetória de um grupo de cinco mulheres em busca do estrelato no mundo da música, o que é marcante por analisar o que as pessoas são capazes de apostar na busca deste objetivo tão comum nos dias de hoje. Mas a música, que permeia toda a relação entre as principais personagens, não é a espinha dorsal da trama como seria fácil supor. Os relacionamentos entre essas mulheres são dissecados de forma muito profunda e crua. Uma rotina de doação e sacrifícios é despida diante dos leitores.

Em 2022, Lídia Jorge lança o livro da década, “Misericórdia”. É um livro que tem como mote a degravação do material que sua mãe, Maria Alberta Nunes Amado deixou, dois anos antes, no início da pandemia. Aqui, propõe toda uma reflexão, todo um diálogo com a sociedade contemporânea, a partir da vivência da Dona Alberti num lar de idosos, o Hotel Paraíso, onde são vítimas do etarismo e de maus tratos. A velhice e a solidão, entretanto, são sentimentos permeados por uma ponta de esperança. Irônico, crítico, emocionante, sensível, o romance nos coloca face a face com o que somos e com o que é nosso tempo, com a necessidade de nos recolocarmos diante da vida e da morte, do passado e do futuro, e de restaurarmos um novo humanismo, um humanismo que seja o encontro de diferenças culturais e, sobretudo, a singularidade compartilhada da experiência interior, capaz de se colocar contra a banalização do mal.

SERVIÇO

  • O QUÊ: 48ª Feira do Livro de Buenos Aires.
  • QUANDO: De 25/4 a 13/5
  • ONDE: Predio Ferial La Rural
  • CIDADE CONVIDADA DE HONRA: Lisboa. Autores: Lidia Jorge, Afonso Cruz, Isabela Figueiredo, José Luis Peixoto e Joana Bértholo.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895