Lembrança de Benedetto Croce

Lembrança de Benedetto Croce

Celso Augusto Uequed Pitol *

Filósofo, historiador e político italiano Benedetto Croce

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"Diante dos despojos desse homem, cujo nome há mais de cinquenta anos se espalhou pela Itália, pela Europa e por todo o mundo da cultura, cada qual se inclina num silêncio aflito e reverente."

Assim a Rádio Vaticano iniciou a locução da notícia da morte de Benedetto Croce, ocorrida silenciosamente na sua residência em Nápoles, na Itália, no dia 20 de novembro de 1952. Aos 86 anos, andava sob cuidados médicos havia algum tempo, para a preocupação de seus compatriotas – incluindo o presidente da República, Luigi Einaudi, que solicitava informes diários sobre seu estado de saúde. No dia de seu enterro, Nápoles inteira saiu às ruas para, com devoção e fervor napolitanos, deixar o último adeus ao ilustríssimo filho, mestre maior da filosofia italiana em seu tempo, renovador da paisagem cultural de seu país e corajoso defensor da liberdade mesmo nos piores momentos da ditadura fascista. 

É difícil termos a dimensão da importância de Croce para a Itália da primeira metade do século XX. Basta dizer que a mensagem do Vaticano era a de um antigo adversário, que via não poucos perigos doutrinários nas teses crocianas. Outro adversário, o marxista Antonio Gramsci, qualificou-o como o "papa laico da cultura italiana", e o escritor Primo Levi dizia que, nos tempos incertos da Segunda Guerra, quatro eram as fontes de certeza para os italianos: a Bíblia, a geometria, a física e Benedetto Croce. Ser uma fonte de certeza e autoridade convém a um papa - mesmo aos do tipo laico. E Croce parecia ter consciência de que cumpriria esse papel: em mais de cinco décadas de dedicação à filosofia, enfrentou todos os temas e questões, da estética à ética, da história à política; envolveu-se em todas as polêmicas, dentro e fora do campo do pensamento; e, quando o país precisou, assumiu o púlpito para denunciar a barbárie do fascismo, suportando estoicamente as mais duras provas impostas pelo regime. Cada um terá, portanto, uma visão de Croce; cada um encontrará um motivo para inclinar-se diante de ele. Para isso precisamos, porém, conhecê-lo primeiro.

Benedetto Croce nasceu em 1866 em Pescasseroli, sul da Itália, em uma família pertencente à alta burguesa napolitana. Aos 17 anos, um terremoto que atingiu a ilha de Ísquia, onde a família passava férias, vitimou seus pais, tendo deixado o próprio Croce soterrado. Sem familiares próximos, passa à tutela de seu tio, Silvio Spaventa, irmão do filósofo Bertrando Spaventa e responsável por introduzi-lo nos estudos filosóficos. Frequenta o curso de Direito na Universidade de Nápoles, sem graduar-se: prefere assistir às palestras de Antonio Labriola, pioneiro do marxismo italiano, passando em seguida a interessar-se pela obra de Karl Marx e pelo socialismo. Ao longo da juventude, aproxima-se do pensamento de seu conterrâneo Giambattista Vico e, principalmente, do de Hegel, filósofo que o acompanhará para sempre. A relação de Croce com Hegel não significará, contudo, uma aceitação cega de cada palavra do mestre, com quem manteve importantes divergências. O "ser hegeliano", para Croce, tinha um sentido muito particular: "Sou, e creio que é preciso ser hegeliano",disse ele. "Mas no mesmo sentido em que qualquer um que tenha, em nossos tempos, um espírito e formação filosófica, é, e se sente, a um tempo, eleático, heraclitiano, socrático, platônico, aristotélico, estoico, cético, neoplatônico, cristão, budista, cartesiano, spinozista, kantiano, no sentido que todo pensamento, e todo movimento histórico do pensamento, não pode passar sem deixar seus frutos, sem trazer um elemento de verdade".

Essa capacidade de aprender continuadamente, sem prender-se a grupos ou escolas, será uma das marcas definidoras de sua trajetória. E nós, leitores de Croce, também aprendemos muito. Aprendemos, por exemplo, a separar política e moral, o que nos protege dos discursos confusos de moralistas baratos; aprendemos a entender o liberalismo como um projeto cujo fim último - o progresso do espírito humano - não está necessariamente vinculado à economia de livre mercado (que Croce denomina "liberismo"), podendo admitir outras formas de produção de riqueza; e aprendemos, também, a ler um poema ou um romance, a apreciar um quadro ou uma canção, buscando neles a fantasia e a criação - pois a arte, segundo Croce, é intuição, a "forma auroral de conhecimento", anterior ao conceito; é criação e não reflexão, monumento e não documento.

Mas não aprendemos de Croce apenas o que lemos em seus livros. Afinal - parafraseando uma de suas mais conhecidas obras - ele foi, desde o começo, homem de pensamento e de ação, e sua ação no mundo também constitui exemplo a observar. Em 1910, assume a cadeira de senador e, em 1920, exerce brevemente o cargo de ministro da Instrução pública. Em companhia de Giovanni Gentile, seu parceiro intelectual, funda, em 1903, a revista "Crítica”. Contudo, a aproximação de Gentile com Mussolini levará a um inevitável rompimento: quando ele lança o "Manifesto dos intelectuais fascistas", em 1925, Croce logo responde com o "Manifesto dos intelectuais antifascistas", e sua "Crítica" se converte em um importante ponto de resistência intelectual ao regime, com a participação de pensadores de todas as tendências.

Em sua Itália natal, influenciou toda uma corrente de social-liberais, social-democratas e socialistas, dos quais se destaca Norberto Bobbio, que mantinha uma foto de Croce em sua escrivaninha. No restante da Europa, sua "Estética", livro de 1902 que não poucos consideram sua obra-prima, influenciará decisivamente o trabalho de Leo Spitzer, Dámaso Alonso, Karl Vossler e muitos outros filólogos, críticos literários e historiadores da literatura. Teve muitos leitores na América Latina da primeira metade do século XX, em um contexto de intensa imigração italiana e de consequente circulação de pensadores e escritores italianos; de conservadores como Jorge Luis Borges a socialistas revolucionários como José Carlos Mariátegui, todos encontraram soluções, problemas e interpretações na obra crociana. No Brasil, deixou sua marca na crítica literária de Alfredo Bosi, Otto Maria Carpeaux, Antonio Candido e muitos outros, além de um incontável número de juristas, cientistas políticos, historiadores e filósofos. E, entre este variado grupo de leitores e discípulos de Croce, esteve também o nosso Guilhermino César, que se referiu a ele nos seguintes termos:

"Qualquer que seja a nossa posição diante do pensador a quem devemos tal obra, algo subsiste fora de nenhuma dúvida: a mente crociana realizou a aventura do verdadeiro filósofo: procurou sempre. Durante mais de meio século, buscou completar sua metódica - retificando, ampliando, ratificando e documentando-a - e nisto é que encarnou realmente a sã curiosidade filosófica, na paixão das ideias, na lealdade a si mesmo, à unidade intrínseca do seu pensamento".


Uma aventura à qual Benedetto Croce entregou-se com coragem intelectual e firmeza moral. Por isso, nesse momento, aos setenta anos de sua morte, dedicamos a ele nosso silêncio reverente e nossa lembrança.

 

Professor, jornalista e ensaísta. Mestre em Memória Social, graduado em Letras e Direito.


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895