Lutzenberger – o artista dos dois mundos

Lutzenberger – o artista dos dois mundos

Curador da mostra “Lutzenberger Universal”, que abre no dia 3 na Capital, José Francisco Alves, aborda em artigo o legado do artista e arquiteto teuto-brasileiro

Correio do Povo

Uma das obras da mostra "Lutzenberger Universal", "As notícias do Correio do Povo", aquarela de 10,5 x 14,5cm

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Um dos grandes exemplos de imigrante com contribuição significativa para a nossa riqueza artística foi o alemão e brasileiro José Lutzenberger, que viveu e produziu 38 anos e meio na Europa e 31 anos no Brasil. Trata-se de um nome que precisa ser constantemente referido pelo significado de sua produção intelectual, com legados originais e únicos em dois continentes, nas áreas de arte e arquitetura. Por essa razão, a Casa da Memória Unimed Federação/RS o escolheu para iniciar o ano de homenagens ao bicentenário da imigração alemã, por meio da exposição “Lutzenberger Universal”.

Nasceu Joseph Lutzenberger em 13 em janeiro de 1882, em Altötting, reino da Baviera, Império Alemão. Teve em seu aprendizado infantojuvenil, em negócio familiar de gráfica e editora, o desenvolvimento de um talento artístico que lhe proporcionou experiência fundamental em desenho, diagramação e tipografia. Para sobreviver em uma profissão técnica que incluísse arte, Lutzenberger optou por não seguir o negócio do pai e formou-se engenheiro-arquiteto em Munique, em 1906.

Em seu início profissional, teve uma carreira de projetista, em firmas e governos, em várias regiões da Alemanha e exterior (em Praga). Em julho de 1914, Lutzenberger tinha 32 anos e meio e estourou a Primeira Guerra Mundial. Apresentou-se ao exército imperial alemão e serviu como oficial no front francês. Após a guerra, no início de 1919, Joseph voltou para a Baviera, recomeçou como projetista e voltou a ilustrar livros. Em 1920, candidatou-se a um emprego no extremo sul do Brasil, para cinco anos na construtora Weiss, Mennig e Cia. Profissional experimentado, Lutzenberger, aos 38 anos e meio de idade, em 5 de agosto de 1920 desembarcou em Santos. Em seguida, estabeleceu-se em seu destino, Porto Alegre. Aqui, de imediato, aportuguesou o seu prenome para José. Após o seu contrato de trabalho, com projetos importantes já realizados, aqui estabeleceu-se. Em fevereiro de 1926, casou-se em Novo Hamburgo, com Maria Emma Elsa Kroeff (1893-1969). Ao constituir família, José Lutzenberger teve três filhos. José Antônio Lutzenberger (1926-2002) tornou-se mais conhecido que o pai, como ecologista de renome internacional. As filhas, Magdalena (1928-2017) e Rosa Maria (1929-2021), foram professoras no Instituto de Artes da Ufrgs.

A obra como arquiteto de José Lutzenberger somente nas últimas décadas teve a sua compreensão devidamente entendida como de grande significado, com qualidades absolutamente originais em suas interpretações do eclético ao moderno. Dos projetos a se destacar, podemos citar três, em Porto Alegre: Igreja São José (1922), Pão dos Pobres (1925) e Palácio do Comercio (1936). Sua produção em arte, quando jovem gráfico em sua cidade natal, começou em desenho, principalmente como ilustrador de livros; posteriormente, desenvolveu-se como aquarelista. Também dominou, como evidenciam suas poucas obras na técnica, a pintura a óleo. Sua marca distintiva, a enorme produção em aquarela, inicialmente foi marcada pela série realizada na Primeira Guerra: obras que registraram o dia a dia dos soldados, as paisagens ocupadas e as áreas devastadas, campos apocalípticos, momentos de descanso, cavalos, retratos de seus homens, armas usadas, etc. No Brasil, iniciou outras fases, em segmentações e temáticas que refletiram, obviamente, os novos estímulos visuais, os contatos com a nova gente, seus quotidianos, as paisagens urbanas e rurais, os mitos e a história da nova terra. Seus personagens, por vezes são retratados repetidos, em situações diferentes, em várias obras. Lutzenberger também os retrata em feições caricaturais e situações hilárias. No seio familiar, a arte foi também uma presença constante: produziu cadernos absolutamente espetaculares, que registraram o crescimento dos filhos, em desenhos e anotações cômicas, minuciosas e descritivas.

A exposição “Lutzenberger Universal”, que a partir de 3 de abril estará aberta ao público, reúne as diversas facetas de sua produção em arte e arquitetura. São dezenas de trabalhos como esboços iniciais, estudos intermediários e avançados, para o Palácio do Comércio (1936-1940). Este conjunto exemplifica o seu modo de pensar a arquitetura, por meio de seu talento como desenhista e aquarelista. Os desenhos arquitetônicos envolviam também a execução de apresentações e registro dos projetos como obras de artes gráficas incomuns, “cartazes” a nanquim, aquarela e têmpera, com emolduramentos e arabescos desenhados com o acompanhamento de tipografia única, por ele também desenvolvida. Uma forma de arte que tem referência em seu ambiente formativo europeu, em revistas de arte e arquitetura.

As aquarelas, desenhos e óleos em “Lutzenberger Universal” mostram diversas fases do artista plástico. Da produção no Velho Continente, um dos desenhos trata-se dos mais antigos trabalhos datados pelo artista, uma paisagem bávara de 1904. Também há uma série de obras que retratam as cidades que circulou, bem como as situações de guerra, já descritas. A fase brasileira é bastante numerosa e variada em paisagens urbanas e rurais, gaúchos, escaramuças entre farroupilhas e imperiais e desenhos insólitos, em especial o surpreendente nanquim “A Roda da Vida”. Grande parte da mostra, portanto, é inédita ou não exibida nos últimos 50 anos, ou mesmo não reproduzida em publicações, livros e catálogos. A obra ícone da exposição é um inédito óleo sobre tela, um retrato de 1915 do então oficial do exército do Kaiser, Joseph Lutzenberger, feito por Hermann Klimsch (1867-1960). Durante os meses da mostra, a Casa da Memória promoverá apresentações por especialistas sobre a obra em arquitetura e a arte de Lutzenberger, bem como visitas orientadas à Igreja São José, Pão do Pobres e Palácio do Comércio.

Para “Lutzenberger Universal”, foi produzido um catálogo com reproduções de obras e fotografias atuais de arquitetura, bem como um texto que busca trazer novas informações. Uma curiosidade na publicação é a informação de onde vem a referência ao seu indicado nome “completo” como “Joseph Franz Seraph Lutzenberger”, jamais existente em qualquer documento na Alemanha, após o batismo, e, obviamente, no Brasil. Aqui radicado e incorporado à nossa cultura, nunca mais retornou a sua pátria-mãe. Aos poucos, procurou naturalizar-se. Numa primeira tentativa, professor do Instituto de Belas Artes do RS, arrimo de família, esposo de brasileira e pai de três filhos pequenos brasileiros, teve sua naturalização negada, em 26 de janeiro de 1940, em clima xenófobo do Brasil do período. Em 1950, a solicitou de novo e obteve sua cidadania em 18 de setembro de 1950. Cerca de dez meses depois, a 2 de agosto de 1951, Lutzenberger faleceu em decorrência de um câncer.

José Lutzenberger foi um dos milhares de imigrantes germânicos crescidos na perspectiva do então – novo e efêmero – Império Alemão (1871-1918). Com a corajosa decisão de radicar-se em um novo país, à sua maneira ele respondeu e buscou construir a nova identidade brasileira, sem esquecer a cultura assimilada pela vida já plenamente formada antes, condição que não pode ser tirada da pessoa, mesmo na construção de um recomeço em outra nação, por força de uma naturalização. Lutzenberger deixou memórias, cerca de 80 páginas manuscritas, nas quais discorreu também sobre esta situação. Excertos do conteúdo de suas narrativas estão em trabalhos universitários que trataram sua vida e produção intelectual, em especial a tese de João Hecker Luz (2023). “Lutzenberger Universal”, assim, soma-se aos esforços precedentes em contextualizar e divulgar a vida e obra deste notável alemão e brasileiro.


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DESDE 1º DE OUTUBRO 1895