Mais um Oscar de melhor fotografia para um homem: nada de novo no front

Mais um Oscar de melhor fotografia para um homem: nada de novo no front

Marina Cavalcanti Tedesco *

Diretora de fotografia Lílis Soares em filme nigeriano "Mami Wata"

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Na noite do domingo, dia 12 de março, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas perdeu a oportunidade de premiar a australiana Mandy Walker pelo seu trabalho como diretora de fotografia do longa-metragem “Elvis”. Um Oscar para Mandy seria muito merecido pelas imagens que ela levou às telas, as quais foram agraciadas, no começo deste mês, com o prêmio da Sociedade Americana de Diretores de Fotografia, a poderosa associação de diretores de fotografia dos Estados Unidos. 

Mas um Oscar para Mandy seria bem mais do que isso. Seria a primeira vez na história da premiação, que tem quase um século, que uma mulher venceria nesta categoria. Porém, a Academia preferiu, mais uma vez, contemplar um filme que embeleza a guerra (ainda que só imageticamente) e fotografado por um homem. O filme em questão se chama “Nada de novo no front”, um título premonitório e que até poderia ser engraçado, se a situação não fosse trágica.

A direção de fotografia é, em todo o mundo, uma das áreas do audiovisual com maior sub-representação de mulheres. Durante décadas, quando o desincentivo não era suficiente para mantê-las longe da profissão, eram feitas coisas mais graves. A pioneira estadunidense Brianne Murphy relata que tentou durante anos tanto se sindicalizar quanto entrar para a Sociedade Americana de Diretores de Fotografia. Após anos de insistência, foi a primeira mulher a ser admitida em tal sociedade, em 1980. Ou seja, 85 anos depois da invenção do cinema.

Também na década de 1980, Luelane Corrêa, primeira mulher a fazer assistência de câmera em um longa-metragem brasileiro de ficção, enfrentou problemas. Ao ir buscar uma câmera para uma filmagem, teve dificuldades para retirá-la. “‘Você sabe mexer?’. ‘Sei’. ‘Você sabe carregar o chassi?’. ‘Sei’. Eles não acreditavam. Era complicado. Aí, eu me lembro que esse dia eu falei assim: ‘Vem cá, ou vocês me dão o equipamento, porque a equipe tá no set esperando, ou eu vou ter que ligar pro produtor e falar que não estou conseguindo retirar o equipamento’”. Ela se lembra, como Brianne, de demorar para conseguir se sindicalizar.

Ao chegar neste momento do texto, muitas pessoas poderiam pensar: “ah, mas isso foi no século passado, não acontece mais”. E não estão de todo erradas. Felizmente, é cada vez mais difícil que os preconceitos e boicotes se manifestem de forma tão aberta. Mas o que a pesquisa sobre mulheres na direção de fotografia de longas-metragens brasileiros que coordeno desde 2014 na Universidade Federal Fluminense mostra é que os avanços são bem menores do que parecem à primeira vista.

Apenas em 2001, ou seja, 106 anos depois da invenção do cinema, os primeiros longas-metragens brasileiros com mulheres responsáveis pela direção de fotografia estrearam em circuito comercial. O responsável pela quebra dessa barreira histórica, no cinema de ficção, foi “Tônica dominante", dirigido por Lina Chamie e fotografado por Kátia Coelho. Já no documentário, o responsável foi “Anésia - um vôo no tempo”, dirigido e fotografado por Ludmila Ferolla. Fotografado, portanto, pela própria diretora, e não por uma diretora de fotografia profissional (situação comum ainda hoje nos documentários).

Mas desde que conseguimos, finalmente, sair do zero por cento de participação de mulheres na direção de fotografia de longas-metragens brasileiros, os números têm sido instáveis. Em 2001, 10% dos longas-metragens brasileiros de ficção que chegaram às salas de cinema foram fotografados por mulheres. Em 2021, este percentual foi de 11%. E ele nunca foi mais alto que 14%, recorde (contém ironia) alcançado em 2011.

No documentário de longa-metragem, os percentuais são um pouco mais elevados, pois, como no caso de “Anésia - um vôo no tempo”, quem dirige também fotografa. Além disso, muitas vezes são filmes que contam com menor orçamento e que podem concorrer a menos prêmios para a direção de fotografia (e se é para receber e aparecer menos que se chame as mulheres! - ironia novamente). Se, em 2001, 12% dos longas documentais nacionais que chegaram ao circuito comercial foram fotografados por mulheres, em 2021 elas eram 18%. “Cresceu bastante então?” Bom, eu não diria isso, já que, em 2019, o percentual foi de 12% - de volta para o começo! 

A dificuldade que as mulheres encontram, no Brasil (mas também no mundo), para ingressarem e permanecerem na direção de fotografia de longas-metragens faz com que apenas mulheres com um perfil muito específico consigam tamanho feito. Elas em geral são brancas, tiveram acesso à formação em fotografia no país ou fora dele, nasceram ou residem na cidade de São Paulo e não são mães (vale lembrar que as trabalhadoras e trabalhadores do audiovisual estão lutando para reduzir suas jornadas para “apenas” 10 horas e 5 dias por semana). 

Não consigo me lembrar, por exemplo, de uma gaúcha que permaneça morando no Rio Grande do Sul e pertença a este pequeno grupo. Eu mesma, quando decidi estudar cinema para me tornar uma diretora de fotografia profissional, o que acabou não acontecendo porque me apaixonei pelo ensino e pela pesquisa, tive que me mudar, pois Porto Alegre não tinha um curso universitário público de cinema. Até hoje não tem, e é uma das poucas capitais brasileiras nesta situação.

É por todas estas dificuldades que torcemos domingo passado por Mandy, e que comemoramos muito as conquistas de cada diretora de fotografia pelo mundo. Se 2023 não foi, ainda, o ano em que uma mulher ganhou o Oscar de melhor fotografia, foi o ano em que a diretora de fotografia carioca Lílis Soares foi premiada no Festival de Sundance e no Fespaco - Festival Pan-Africano de Cinema e Televisão de Uagadugu pela fotografia de “Mami Wata”. Tais feitos, tão importantes, tornam-se ainda mais importantes por Lílis ser uma das poucas mulheres negras que já conseguiram fotografar um longa-metragem em nosso país. “Mami Wata” é um filme nigeriano, mas é possível ver o seu trabalho em “Um dia com Jerusa”, de 2021, e em curtas-metragens que rodaram mostras e festivais nacionais e internacionais.

Na verdade, com algum esforço, é possível ver o trabalho de várias diretoras de fotografia. O produto mais recente de nossa pesquisa é um banco de dados de diretoras de fotografia de longas-metragens brasileiros (https://diretorasdefotografia.com.br/). Nele, é possível pesquisar diretoras de fotografia pelos seus nomes, estados de origem e raça, por exemplo. Mas também é possível pesquisar quais foram os filmes fotografados por mulheres lançados a cada ano, quais foram as comédias, romances e suspenses que elas fotografaram, etc. 

Tu, que estás me lendo, sabes quantos longas-metragens brasileiros com diretoras de fotografia já assististe na vida? Não? Então dá uma olhada no nosso banco de dados. Queres conhecer um pouco mais sobre algumas diretoras de fotografia nacionais? Assista ao nosso filme (“À luz delas”: https://youtu.be/rAd2ngU1RI0). O principal objetivo de nosso estudo é somar esforços com outras iniciativas para visibilizar o trabalho dessas mulheres e elas e tantas outras podem fotografar tão bem quanto qualquer homem. Só assim conseguiremos que, um dia, algo de novo aconteça no front.

* Professora de Cinema e Audiovisual na Universidade Federal Fluminense e tem experiência em direção e direção de fotografia. Pesquisa mulheres no cinema desde 2009.


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895