Melissas e margaridas

Melissas e margaridas

Taiasmin Ohnmacht *

Rosane Pereira é a autora do livro "Mulheres Esquecidas" que tem lançamento neste sábado na Associação Vila Flores

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Escrever literatura é arte, escrever literatura sobre o não-lugar do feminino, é arte e política, quanto mais na intersecção gênero, raça, classe. Assim já nos assegurava Rancière: a estética é política, e visibilizar o invisível, o lugar da diferença, é intervir no espaço comum, uma reordenação na partilha do sensível.

Rosane Pereira é uma escritora profícua. Após três livros: dois romances e um livro de contos, lança o romance “Mulheres Esquecidas”. Não é possível ler esta história sem lembrar que além de escritora, Rosane Pereira é psicanalista e idealizadora do Projeto Gradiva, um projeto que proporciona atendimen¬to psicanalítico para mulheres em situação de vulnerabilidade social. “Mulheres Esquecidas” é uma obra que se comunica com sua bagagem profissional e de vida.

Trata-se de um livro que acompanha a história de mulheres, mas também é um romance sobre a constituição de um território de linguagem para aquelas que são silenciadas. É preciso um espaço seguro para ter voz, para criar relações de cuidado e afeto, é assim que a história vai nos apresentando um casarão que é um norte, uma espécie de farol. 

São quatro as personagens principais, mas após a leitura é difícil crer na exatidão deste número, pois as facetas do feminino se multiplicam, se encontram e traçam cada linha do texto. A história de “Mulheres Esquecidas” vai construindo um lugar de comunidade, evocado por Rosane ainda na dedicatória do livro. 

Mesmo sem nada, sem acesso ao mínimo de cidadania, essas mulheres constituem uma ilha humanizadora para fazer frente à dureza de uma sociedade que as coisifica e que rechaça o feminino. As duras trajetórias que fazem dessas mulheres descartáveis, restos, são comoventes e angustiantes, e a narradora as enfrenta com coragem e elegância, e sem meias palavras. No entanto, muito mais comovente é o apelo que as mulheres do livro fazem à vida, à criação da vida. Se podemos dizer que foram esquecidas por família, poder público, espaço urbano, podemos dizer também que elas não esqueceram de viver, pelo contrário, reinventam o milagre da vida a cada página que viramos, e não por serem essencialmente fortes, mas por terem umas às outras, e por encontrarem no espaço do casarão mais do que um teto, um espaço no qual mulheres que foram lançadas nesse não-lugar podem falar.

E o que fala uma mulher? A isso as letras de Rosane vão dando voz. Nesta perspectiva “Mulheres Esquecidas” desperta ainda mais interesse: o Casarão, substantivo masculino, é profundamente feminino. Parafraseando Lélia Gonzalez, é nos braços da mulher negra que a criança encontra palavras doces e humanização. Talvez nessa perspectiva possamos compreender a trajetória de uma personagem que sai de Portugal pelas mãos de um homem, e encontra civilidade não no Brasil, mas no espaço do casarão.

“Melina passou naquela noite por uma espécie de rito de batismo, Júlia deu-lhe um banho com vários baldes de água ”

Quem acompanha a escrita de Rosane talvez se surpreenda com uma questão que atravessa a obra: quem é Mel? Será que já não a encontramos? Uma escritora é habitada por suas personagens que ganham vida própria, e, às vezes, essas personagens insistem na autora, reivindicando mais do que uma narrativa. E por fim, para não dizer que não falei em... Melissas e margaridas são flores, mas poderiam ser mulheres.

* Psicóloga, psicanalista e escritora. 

Lançamento

Rosane Pereira lança o romance "Mulheres esquecidas" (Editora Bestiário, 194 páginas, R$48,00). A sessão de autógrafos acontece neste sábado, dia 21 de agosto, a partir das 17h30min, na Associação Cultural Vila Flores (Rua São Carlos, 759 – Bairro Floresta – Porto Alegre/RS) e vai contar com a leitura dramática da escritora e poeta Lilian Rocha, pontuada por canções interpretadas pela cantora, harpista e violonista Liane Schuler. 


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