Nós que temos apenas o presente irredimível

Nós que temos apenas o presente irredimível

Ronald Augusto *

A poesia de Juliana Meira parece exigir do leitor e da leitora uma disposição para um tipo singular de silêncio:

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A poesia de Juliana Meira parece exigir do leitor e da leitora uma disposição para um tipo singular de silêncio: um silêncio que sabe a uma suspensão da interpretação, mas que ao mesmo tempo não descura daqueles instantes em que a razão é essa água límpida que recebe raio de luz e não se fende em duas – conforme a imagem dantesca. Os poemas de Juliana Meira avançam através de uma contida opacidade e nos deixam no limiar de algo transparente, mas que jamais se efetiva na perspectiva de nos convencer sobre o que quer que seja.

 

Alguém advertirá que essas qualidades – o obscuro e o cristalino em constante hesitação – são bastante conhecidas do fenômeno poético e que, portanto, a poeta estaria nos ofertando algo que muitos praticantes do gênero já nos apresentaram ao longo do tempo. Vamos com calma. No panorama da produção poética relativa, por exemplo, aos pares de Juliana Meira, ressaltar a relevância dessas qualidades significa afirmar que a necessidade de poemas como os que estão contidos em Estes que têm futuro bastante reluz de maneira radical devido justamente à sua escassez no sistema. E isso acontece porque, também a contrapelo do ruído circunstante, Juliana Meira é poeta que não acredita que seja possível chegar à poesia sem passar pela poesia. Em outras palavras, a poeta aprendeu que, como no meu tempo se dizia, não há caminho fácil para lograr os auspícios das musas. Há tantos fazedores de versos que hoje soa ofensivo apostar na crença de que não é simples embestar pelos rumos da poesia. Por outro lado, poetas como Juliana Meira fortalecem minha convicção de que é preciso dobrar a aposta nessa crença.


Juliana Meira não sucumbe, portanto, à tirada espirituosa nem à concepção da poesia como jogo autocentrado que há tempos, entre os seus praticantes, vem resultando em mero virtuosismo metalinguístico. O respeito e a seriedade que Meira dispensa à sua arte são evidentes em “Estes que têm futuro bastante”. E aquela gravidade retórica e afetada que as convenções literárias às vezes associam ao gênero não se encontra aqui quando me refiro aos conceitos de respeito e seriedade. Por outro lado, o apetite e o afeto críticos pelo poema mantêm a linguagem de Juliana Meira em pleno controle dessa disposição quase inescapável à ironia e ao cinismo a que estamos sujeitos – poetas e leitores – contemporaneamente. O brevíssimo poema que segue, dedicado ao filho da poeta, pode ser que dê conta de traduzir esse escape ético que identifico na poética de Meira como reação tanto ao cinismo quanto ao riso leviano: “o papel do livro corta/ teu dedinho // a linguagem não te fere ainda”.


De “poema pássaro” (2015) – as minúsculas programáticas em todos os títulos querem significar alguma coisa, mas não há notas de rodapé a respeito – até o presente conjunto, passando ainda por “na língua da manhã silêncio e sal” (2017) e “água dura” (2019), Meira vem construindo um percurso poético atento aos discursos do seu tempo. Contudo, tanto o tempo quanto os discursos e as narrativas que lhe dão substância, vêm à tona da linguagem da poeta carregando criticamente os traços de suas insuficiências.


Os versos de Idea Vilariño e Orides Fontela, que servem de epígrafes ao livro, também fazem alusão a essas coisas. O tempo e as representações se gastam sem deixar de, entretanto, se fixarem em lápide. Os dias e horas se nos olvidam enquanto sofremos. Ironicamente Juliana Meira dedica o livro aos que têm futuro bastante, porém o que temos mesmo é o presente irredimível.


Memórias, os familiares da infância, maternidade e paternidade no agora-agora, o trânsito através da geográfica pessoal, a província interiorana e o isolamento metropolitano, enfim, Estes que têm futuro bastante se desdobra nessas sequências de biografemas encarnados em poemas que ultrapassam as margens onde o papel é cortado. A lâmina traiçoeira de cada página do livro desafia também nossa relação com a leitura. As possíveis interações entre a poeta e o leitor (o público) implicam alguma forma de rasura. Há desacordos e ambiguidades, inclusive porque a linguagem literária é um jogo equívoco. A experiência empírica (a máquina do mundo) é, a um só tempo, emoldurada e transfigurada pela linguagem de Juliana Meira.


Seus poemas são sistemas de signos geradores de imagens lacunares. Alguns deles exigem uma colaboração mais ativa do leitor. Para que funcionem será preciso que o leitor preencha um punhado de lacunas tamborilando com os dedos seus ritmos inumeráveis; a leitura se converte numa aventura ao desconhecido. Outros poemas, por sua vez, parecem interagir mais com os desejos e as esperanças do leitor; o leitor se reconhece neles após um intervalo de estranhamento.


Estes que têm futuro bastante se efetiva como uma vigorosa conciliação entre a finalidade estética e o empenho de fazer com que se abra perante os nossos olhos a máquina do mundo com todo seu lirismo e sua tragédia. Aqui finda toda interpretação – esse despropósito – e cresce em círculos concêntricos a leitura-enunciação à boca pequena em torno aos poemas de Juliana Meira. Que os leitores e as leitoras os interpretem, porém em sentido musical.

 

* Poeta, crítico de poesia e ensaísta. Formado em Filosofia e mestre em Letras pela UFRGS. Autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015) e À Ipásia que o espera (2016) e Crítica Parcial (2022).


Correio do Povo
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