Narrativas do artista enquanto trabalhador

Narrativas do artista enquanto trabalhador

Priscilla Casagrande *

Público aprecia a obra de Thais Basilio no Muhcab (RJ)

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As consequências da pandemia de Covid-19 no meio artístico ainda reverberam e pautam diálogos sobre o impacto da longa quarentena, do isolamento, da perda de postos de trabalho e das milhares de mortes que se deram em decorrência da doença. Em meio a tudo isso, a produção artística e cultural no país inteiro foi uma das mais afetadas: shows foram cancelados, museus fechados, salas de cinema e teatro sucumbiram a falência, muitos agentes culturais perderam seus empregos. Um momento nebuloso para o segmento artístico, que já vinha enfrentando dificuldades com a falta de incentivo e de investimentos.

Em 2021, quatro pesquisadores desenvolveram a mostra online “Arte como Trabalho”, e hoje, ela ganha a sua segunda edição ainda pautada nas estratégias de sobrevivência dos artistas em tempos pandêmicos. A intenção dos produtores e curadores do evento – Carolina Rodrigues, João Paulo Ovídio, Luana Aguiar e Priscila Medeiros – ainda é promover o debate sobre a situação e as formas de resistência dos profissionais da arte, em especial daqueles que trabalham no campo das artes visuais como artistas, curadores, professores, mediadores, funcionários de museus e centros culturais. A exposição e as atividades de 2021 que foram inteiramente online conectaram público e artistas de todo Brasil.

Nessa nova edição do projeto o protagonismo negro e a sobrevivência dos artistas são os eixos que norteiam a exposição, que recebeu mais de 139 propostas inscritas e enviadas para a comissão curatorial. A chamada pública contemplou quinze artistas, sendo que 61% dos inscritos tem a identificação étnico-racial negra, são eles: Guilherme Kid, Ismael David, Joelington Rios, Joyce Olipo, Juliana Pereira dos Santos, Karine de Souza, Leandro e Silva, Marina Souza, MC Faixas, Osvaldo Carvalho, Siwaju Lima, Tete Silva, Thaís Basilio, Thais Iroko e Viviane Laprovita. 

Graças a eficácia da vacinação contra a Covid-19 as instituições artísticas começaram a reabrir e a segunda edição do “Arte como Trabalho” ganhou corpo em um espaço físico. Mais de 200 visitantes prestigiaram a abertura da exposição no Museu da História Afro-Brasileira, o Muhcab, no centro do Rio de Janeiro. Entre as obras expostas estão pinturas, performances, vídeo, bordados, fotos e esculturas.

O número expressivo de visitantes na abertura da exposição “Arte como Trabalho” é reflexo de um novo olhar sobre as questões do artista e da assertividade do público e de artistas negros ocupando os espaços de arte, sendo uma importante oportunidade para pensar as condições de trabalhadores da arte em diálogo com o resgate, a preservação e a revitalização da memória afro-brasileira. A escolha do Muhcab dialoga em uníssono com a proposta expositiva: o Museu é espaço de luta e resistência da cultura afro- brasileira. Ao percorrer a exposição tudo se encaixa, nos espaços é possível compreender as diferentes nuances propostas por cada artista. 

Na obra "Colo", a artista visual Thais Basílio remete à automatização da função materna a qual mulheres estão constantemente submetidas. Assim, como máquinas são programadas para executar determinadas atividades, o corpo é constantemente programado para executar determinadas funções, sejam elas laborais ou domésticas. O colo é tratado aqui como uma das funções da mãe-máquina, que por sua vez, transfere automaticamente a condição de máquina para as próximas gerações. A pintura faz parte de "mulher-máquina", uma série de obras produzidas pela artista: “Pensadas em dupla vertente: por um lado, tece uma crítica à sobrecarga que as mulheres periféricas sofrem com o acúmulo de tarefas domésticas e profissionais, bem como pelas cobranças estéticas e comportamentais; por outro lado, tece uma crítica à "maquinação" do corpo feminino, fazendo referência às remodelações sociais promovidas pela era digital, que ‘algoritmiza’ a vida, e com isso, robotiza a performance feminina”, revelou a artista. 

A exposição conta também com uma programação livre e gratuita, incluindo ativações do espaço e um projeto educativo com visitas guiadas, há também entrevistas online com convidados dialogando sobre os saberes e fazeres artísticos. A ideia dos produtores é ampliar os cruzamentos referentes as estratégias de sobrevivência dos artistas: "Atravessamos as adversidades com o olhar crítico tão necessário, denunciando a constante reelaboração das políticas de extermínio, mas, ao mesmo tempo, buscando na intimidade das histórias veladas, o vislumbre de possibilidades do existir. É na riqueza de repertórios poéticos dos fazeres coletivos, nos aquilombamentos que se revelam na visualidade, que encontramos a inspiração e a dinamicidade da criação artística do proletariado afro-brasileiro", revelam os curadores do projeto.

“Arte como Trabalho” nos faz refletir sobre o mercado cultural assim como os quais caminhos os artistas buscam para construir alternativas de sobrevivência. A exposição cumpre o papel ao mostrar essas realidades e questiona as relações de trabalho dentro e fora do campo artístico.

*autora: Graduou-se em jornalismo pela PUCRS e atuou como repórter no Correio do Povo e Record TV. Mestranda em História e Crítica da Arte pelo PPG em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFRJ.

 

 


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