No refúgio das memórias de Manoelito de Ornellas

No refúgio das memórias de Manoelito de Ornellas

Maria Alice Braga*

Há 119 anos, em 17 de fevereiro de 1903, nascia o professor, jornalista, escritor, poeta e cronista Manoelito de Ornellas

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Há 119 anos, num 17 de fevereiro de 1903, nascia, na pequena cidade do Itaqui (RS), o menino que se tornou professor, jornalista, escritor, poeta e cronista Manoelito de Ornellas.
Ao lembrá-lo, hoje, encontrei, no meu acervo, a pasta que a Lília Pinto de Ornellas, filha de Manoelito, presenteou-me com algumas fotos, cartas e documentos que pertenceram ao seu pai. Para minha grata surpresa, a crônica publicada no espaço “Prosa das Terças”, no jornal Correio do Povo, no dia 3 de janeiro de 1967, intitulada “No refúgio das memórias...” saltou do invólucro como a pedir para ser (re)visitada, voltando à vida para comemorar o aniversário do autor. 

Então, atendendo a um pedido que me veio por acaso, escrevo sobre o texto que foi publicado há 55 anos, mas tão atual, tão vivo, tão lírico. Manoelito escreve sobre suas memórias registradas em dois livros completos e outro que mal começara a escrever. “Terra Xucra”, o primeiro volume, destaca que já era tempo de rever o passado com olhar tranquilo de quem viveu na pequena cidade natal, Itaqui, e nas agrestes campanhas que se estendem do Uruguai às nascentes do Puitã, do Itu e do Butuí – nomes da geografia íntima da infância do menino que se deslumbrava diante do rio que lhe fora amigo e companheiro dos primeiros sonhos. “Terra Xucra” recupera, também, os anos do inquieto adolescente que vibrava com os livros que ganhava e com a construção da escola, sonho visionário de seu pai. “Terra Xucra” é uma história simples, eivada de poesia, sem grandes episódios, com o pampa de cenário e a natureza bárbara numa fronteira de garrucha.

No registro de suas memórias, Manoelito, menino, lembra quando o vento gemia entre as tábuas largas do teto do casarão nas noites de inverno; um minuano que uivava nas frinchas e entrava pelas portas mal fechadas, rodopiando no fogo do galpão. Lá fora, o céu como aço azul, ameaçador, repleto de estrelas. No lume do candeeiro, os olhos decifravam as letras das velhas páginas dos livros que o menino ganhava. Lembranças, fixadas na geografia e no tempo perdidos, valeram para compensar as cicatrizes e os amores que aqueceram o corpo e a alma do guerreiro.

No segundo volume das memórias, “Mormaço”, ressurge a vida do jovem em terras estranhas, vivendo os ensaios de novas gentes à margem de uma ferrovia e ao largo de uma estrada poeirenta com imensos areais no verão e lodo no inverno. Povoamento que nascia no planalto da serra. Vida pequena de almas em convívio e conflito, de gestos rudes e coração grande. No cotidiano, chuva e sol... mormaço... calor que subia da terra encharcada. 

O terceiro volume nasce bem mais tarde, “Estuário”, a vida na cidade grande, assim como foram grandes os dramas e as comédias com personagens de todas as cores, de contrastes e de sentimentos díspares. Tudo isso levava o escritor, já adulto, a mergulhar nas manhãs, tardes e noites em seu pequeno mundo da sala povoada de livros... e de lembranças.

“Estuário” ficou incompleto. Manoelito datilografou 14 páginas dos dois primeiros capítulos do terceiro volume das suas memórias após 33 anos de sua chegada, com a família, à cidade que adotou como sua, Porto Alegre. “A âncora de pedra”, título do primeiro capítulo, foi escrito no dia 19 de setembro de 1968, mas quis o destino que “Estuário” não chegasse ao fim, talvez para que os leitores de Ornellas pudessem continuar a história, tendo como personagens as viagens com Erico Verissimo, antigo amigo de Ornellas, à frente da Revista do Globo; Augusto Meyer, um clássico, segundo Manoelito, diretor da Biblioteca Pública do Estado do RS; Athos Damasceno, dono de um sorriso malicioso e olhar cintilante, poeta que dominava os segredos da sátira; Mário Quintana, o poeta que eternizou a “Rua dos Cataventos”; o médico espanhol e psicanalista Amador Flores, que introduziu Ornellas no complexo e apaixonante mundo da psique humana; e o mestre ideal que Manoelito elegera para si, Alcides Maya, diretor do Museu Histórico do Rio Grande do Sul e membro da Academia Brasileira de Letras, autor de livros inesquecíveis para o jovem escritor Ornellas, como “Tapera” e “Ruínas Vivas”, que Manoelito conhecia várias páginas de cor. 

Manoelito de Ornellas tinha prazer em contar suas histórias e afirmava ser para que os outros descobrissem, no paralelo das experiências semelhantes, razões para aceitar os tributos, quase sempre muito pesados. Entretanto, dos escombros, afirmava o poeta, restam sempre fragmentos que resumem a própria intensidade da vida, como a força de uma flor nascida entre as paredes descolmadas de uma tapera ou o vegetal que rompe o asfalto, desafiando a sensatez humana.
A relação entre o tempo, o espaço e o indivíduo é uma questão a ser sempre lembrada, a matéria memorável. Assim, a memória coletiva elege a história como um de seus lugares de memória. A história eternizada na tua “Terra Xucra” ou guardada entre chuva e sol em “Mormaço”. Já no “Estuário” reside um espaço para a construção de novas histórias e, assim, preservar a memória do rincão que te valorizou como poeta, escritor, cronista e ensaísta. A tua Porto Alegre completa, neste 2022, 250 anos de existência.

* Professora. Doutora em Letras - Teoria Literária, com ênfase em Crítica Genética pela PUCRS. 

 


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DESDE 1º DE OUTUBRO 1895