O avebtureiro das palavras

O avebtureiro das palavras

Júlio Ricardo da Rosa *

Arturo Pérez-Reverte autor de "O Pintor de Batalhas" e de "Línea de Fuego"

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Em 2015, para comemorar seu aniversário, a editora espanhola Alfaguara reuniu em um teatro três de seus maiores escritores. No palco estavam o peruano Mário Vargas Llosa, e os espanhóis Javier Marias e Arturo Perez-Reverte. A diretora editorial, transformada em apresentadora, declarou que naquele momento estavam reunidos Flaubert (Vargas Llosa), Proust (Marias) e Alexandre Dumas (Pérez-Reverte). Sua observação se referia aos caminhos literários de cada um deles, sem comparar qualidade de suas produções. Dentre todas, a mais adequada foi a que aproximou Reverte ao pai de D’Artagnan. Como genial autor francês, ele percorre os dramas mais profundos através de narrativas vibrantes, com ação e tramas que envolvem o leitor. Os sete volumes que compõe as aventuras do Capitão Alatriste são uma mistura perfeita de romance histórico com aventura, que narram as andanças e vida de um soldado da fortuna na Espanha do século XVII. Seus romances sobre o espião Lorenzo Falcó, passados durante os anos da Guerra Civil Espanhola são uma leitura apaixonante.

Arturo Pérez-Reverte foi durante muitos anos correspondente de guerra na Europa, África e nas Américas. Deste período ele retirou lições que aplicou em um livro que é sua obra-prima até o momento— “O Pintor de Batalhas.” Este romance maravilhoso conta a história de um fotógrafo que retratava estes conflitos e, aposentado, vive solitário em um torre junto a costa espanhola. Nas paredes da sala da construção pinta um enorme painel, utilizando suas lembranças profissionais e misturando a elas os quadros de disputas que viu em museus pelo mundo afora. 
Numa manhã, um desconhecido bate à sua porta e lhe mostra uma fotografia. Ela exibe um soldado faminto e esfarrapado, mas fazendo mira com uma arma, durante a guerra da Bósnia. O pintor reconhece ser um de seus trabalhos mais famosos. O estranho diz que o homem na imagem é ele, que a foto desgraçou sua vida e está ali para matar seu autor. O que vem a seguir é um drama profundo misturando um amor perdido, violência e lembranças da crueza das lutas. Continuando com a comparação entre Reverte e Dumas, “O Pintor de Batalhas” é “O Conde de Montecristo” do espanhol.

“Línea de Fuego,” publicado em 2020, é um relato sobre a “batalha do Ebro,” que definiu os destinos da guerra Civil Espanhola. Reverte alterna personagens oferecendo visões dos dois lados em luta. Não há herois ou vilões. São apenas seres humanos jogados em um universo de violência desmedida. Se os franquistas tem um comandante sanguinário, os republicanos exibem um comissário do partido comunista inflexível, sempre em busca de vítimas que possa culpar e executar. “Fuzila-se pouco aqui,” ele declara em um trecho do livro. As violências desmedidas de ambos os lados são relatas sem hesitação, como o caso do sacristão que foi executado em lugar do padre local que havia escapado.

Os combatentes ou tem suas convicções ou são vítimas do redemoinho guerreiro. Existem momentos magníficos como a história do marceneiro, forçado a lutar pelo franquismo e do marroquino, que se engaja no mesmo exército por acreditar que guerreia pelo lado justo do conflito. A amizade que se desenvolve entre estes seres tão distintos é um dos grandes momentos do livro, apresentando raras situações de humor, como a dificuldade do muçulmano em pronunciar o nome ao amigo, Guinés, que ele sempre pronuncia Inez. 

O mesmo vale para a paixão platônica entre a técnica em comunicações comunista e o comandante de uma brigada. Enquanto ela exala crença e palavras de ordem, ele vê com desalento o uso que os comandantes fazem daqueles homens e mulheres, vindos de diferentes partes do mundo para combater por suas convicções. Enquanto os franquistas empregam milhares de jovens trazidos à força para morrerem em missões suicidas, os republicanos enfrentam divisões internas e não hesitam em prejudicar seus desafetos em incursões sem chance de êxito.

Reverte olha a todos com realismo e compreensão. Não há ensinamentos morais, castigos ou prêmios. Vítimas e sobreviventes são levados por aquele redemoinho de combates, e seus destinos são quase casuais. Há figuras trágicas, como o fotógrafo húngaro, mistura romantismo e desespero, desafiando a morte nas batalhas que retrata, ou o jornalista inglês, comedido e frio, mas que é incapaz de abandonar as coberturas de conflitos. 

“Línea de Fuego” é formatado como um segmento de contos que se comunicam e tem sequência em distintos momentos da narrativa. Não há um personagem principal em nenhuma das tramas e, se muitas se entrelaçam, outras servem de suporte para o avançar dos fatos. Estamos frente à uma escrita de enorme fluidez, que fascina o leitor sem abrir mão do realismo e da veracidade dos personagens, criados por palavras, mas esculpidos em carne e osso, como só os grandes escritores conseguem. 

* Escritor e crítico literário. Autor de obras como "O Covil do Diabo" e "A Cicatriz Invisível". Blog: viagensimoveis.wordpress.com.

 

 

 


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