O cachorro sultão

O cachorro sultão

José Eduardo Degrazia *

Sultão era um cão pequeno, forte, de dentes respeitáveis, raça não sabida, cor escura, veloz como um raio. Doce com as crias da casa, raivoso e rosnador para os estranhos

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Aos noventa e oito anos o meu pai lembrava muito bem da sua infância. Era só falar de o nome de uma pessoa, um acidente geográfico, um sabor, um cheiro, que ele imediatamente começava a contar a paisagem da sua meninice. A prosa era sempre saborosa, a dos velhos que têm muito para contar e sabem muito bem fazê-lo. Passou esses longínquos anos do início do século XX na cidade de Itaqui, nas barrancas do rio Uruguai. Do outro lado a cidadezinha argentina, Alvear. Atravessando o rio, as chalanas levando o pequeno comércio entre as margens, os lícitos e os ilícitos, os contrabandos. Rio de banhos longos nas tardes de verão, os bandos separados em meninos e meninas, não podiam banhar-se juntos por causa dos costumes da época. Eram doze irmãos criados pela dona Alba, minha avó, e pelas empregadas Vilma e Henriqueta.

A cidade merecia o nome que tinha, pois tudo era de pedra, os muros, a maior parte das casas, as ruas, poucas, pois as outras eram de terra batida. A chuva formava corredeiras nos arruamentos e descia desde o Cerro para o rio, águas excelentes para patinhar e largar barquinhos de papel na torrente. Ao chegarem em casa, encharcados, levavam uma chamada a preceito da mãe desolada com as roupas embarradas. No fundo da casa em que se criaram, tinha um grande pátio com árvores frutíferas e hortas, galinheiro, cães de guarda e de criação. Um deles era o Sultão.
O cachorro acompanhava sempre os guris para onde fossem, quando iam pescar ou jogar bola, quando mergulhavam nas águas do rio, ou iam comprar mantimentos nas vendinhas, ou quando ficavam ouvindo as histórias dos mais velhos nas tendas e pulperias, de ouvidos espichados para os causos de fantasmas e de revoluções.

Era um cão pequeno, forte, de dentes respeitáveis, raça não sabida, cor escura, veloz como um raio. Doce com as crias da casa, raivoso e rosnador para os estranhos. Nascera na casa e fora criado no fundo do pátio. Afeiçoado às crianças, era um da turma, companheiro. Ah, disse o meu pai, tinha uma mancha branca na volta do olho esquerdo.

Num dia modorrento de verão os irmãos menores, depois do almoço, não queriam fazer a sesta, e não podiam brincar para não incomodar os adultos que dormiam. Vamos para o rio, um deles sugeriu, e se foram todos, uma escadinha de guris, o menor com uns três anos de idade. Foram pelas ruas desoladas, as casas fechadas sob o mormaço da tarde. Os raios faiscando nas pedrinhas. Nenhum vento levantava o pó das estradas que chegavam do campo e que eram lindeiras com a cidade. Alguns cavalos pastavam calmamente no matagal que crescia nalguns terrenos baldios.

Sultão, corria de um lado para o outro, as crianças atiravam pedaços de madeira que ele abocanhava no ar e entregava ao que estava mais perto para que a brincadeira continuasse. Tudo era algazarra e felicidade no descampado, até chegarem à beira do rio, onde as águas escuras do Uruguai chapinhavam nas pedras das barrancas. Outro grupo de guris da vizinhança também perambulava por ali, pescando, atirando pedras no rio, simulando brigas, dando gritos e risadas. Dois cães os acompanhavam, uns mastins, treinados para enfrentar pumas e lobos no campo, e defender as ovelhas dos abigeatários.

Foram ficando por ali, sentados no alto de uma barranca, fazendo pedrinhas fazerem círculos na superfície da água, ou quicarem duas, três, quatro vezes, até mergulharem no fundo escuro dos círculos líquidos e profundos. Estavam tão desatentos e dispersos que não notaram quando o mais novinho deles, o mano Jorge, desceu a barranca e foi aproximando-se do rio. Só Sultão notou, e num pulo correu em direção ao menino, esbarrando no grande mastim marrom que vinha em disparada, a grande boca aberta mostrando os poderosos dentes, pronto para atacar a criança.

Os dois cachorros se pecharam e latiram um para o outro, se encararam, deram voltas, mastigaram valentias. Nós ficamos olhando a cena se desenrolar como numa fita de cinema, apavorados, esperando que o cachorro maior atacasse o nosso e o fizesse em pedaços, mas logo corremos para pegar o Jorge que nem se dera conta do que estava acontecendo, e continuava a atirar pedras no rio. Os outros guris se aproximaram, puxaram o mastim para um lado, deram gritos e ordens, que o cachorro no início não obedeceu. Um dos irmãos mais velhos atirou-lhe uma pedra, e só, então, o grande cão desistiu do combate e foi embora acompanhando os seus donos.

Sultão não arredou as patas da frente do mano Jorge, retesadas. Tremia e salivava, e latia como o herói que deveras era.

* Tradutor, poeta, romancista, contista, ensaísta e dramaturgo

 


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895