O cheiro de rolha queimada em poemas de Manuel Bandeira

O cheiro de rolha queimada em poemas de Manuel Bandeira

Poeta, filósofo e ensaísta Ronald Augusto analisa alguns poemas negristas na carreira do poeta pernambucano

Correio do Povo

É possível ler Manuel Bandeira com a intenção de enfrentar o caráter inegavelmente negrista de determinados poemas de sua obra.

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Hoje dispomos de um conjunto de conceitos para pensar a produção literária de pessoas negras. Temos literatura negra, literatura afro-brasileira, literatura negro-brasileira ou literatura de autoria negra. Ainda que aceitemos diferenças entre as propostas, há um dado em relação ao qual não se verifica nenhuma discordância entre os defensores da cada um dos conceitos, a saber, por princípio os autores dessa produção literária são negros e de algum modo eles se deixam reconhecer, através das tramas da linguagem literária, como negros na experiência textual que realizam.

Já os textos literários de autores brancos dedicados a recriar, por exemplo, aspectos da cultura afro-brasileira, o elemento negro ou as tensões raciais de nossas interações sociais, podem representar, quando muito, uma literatura negrista. Trata-se de uma literatura de viés temático que atende principalmente ao interesse do autor não-negro decidido a fazer uma incursão através de um conjunto de signos que lhe são exteriores ou alheios, mas que desafiam sua imaginação criativa. René Depreste, em seu estudo “Bonjour et adieu à la négritude” (1980), analisa a ideia e o imaginário negristas. Segundo o poeta e romancista haitiano, para a construção de uma história do negrismo na América Latina, é inevitável considerar os antecedentes do fenômeno na Europa. Depreste entende o negrismo como o conjunto de múltiplas de imagens que se formou das pessoas negras através da chave dos estereótipos.

Na Europa, antes de se revelar como movimento de vanguarda ou de fornecer elementos vanguardistas à arte, o negrismo, de acordo com Depreste, estava presente sob suas formas primitivas, ou seja, nos contos de fadas, nas histórias de viagens, nos escritos de viajantes. No Iluminismo, segundo o escritor haitiano, seus traços podem ser encontrados em escritores profissionais, em todos os tipos de textos, enternecedores ou zombeteiros, até mesmo no romantismo abolicionista e paternalista.

Até agora os textos negristas acabam por sucumbir, de fato, a uma série de estereótipos e clichês, principalmente aqueles textos circunscritos à tradição modernista que, devido a algumas cláusulas dos seus manifestos, tomou para si a missão de redescobrir o Brasil a partir de um olhar em que se pudesse identificar um modo de ser brasileiro que não fosse simples emulação de tiques culturais da civilização europeia.

É possível ler Manuel Bandeira com a intenção de enfrentar o caráter inegavelmente negrista de determinados poemas de sua obra. Consideramos que o paternalismo sentimental de Bandeira, típico de um sinhozinho que foi amamentado por uma negra da casa-grande, transferiu à evocação poética de sua infância uma dimensão demasiadamente edulcorada no que diz respeito à figuração das formas de vida das pessoas negras. Os poemas em questão, além do traço paternalista, estão carregados de um romantismo quase cego à experiência da escravidão, parecem minimizar as consequências do acontecimento para todos os envolvidos – nomeadamente para os negros, mais afetados negativamente – porque o ângulo de corte da imaginação poética é o da ternura da infância doméstica, bem como da ironia bonachona permitida pela intimidade familiar. As memórias pré ou pós-abolicionistas dos poemas de Manuel Bandeira, humildes e ternas, recriam os últimos tempos do colonialismo escravista a partir do ponto de vista de quem sempre segurou o chicote pelo cabo.

Parte expressiva da poética de Bandeira não se afasta de um certo quadro espiritual do período. Depois da abolição da escravidão no século 19 há uma nova promoção da imagem do negro. A condição de liberto soa como um salvo-conduto concedido para seu ingresso no mundo humano. Depestre argumenta que nos Estados Unidos, por exemplo, se produz a literatura da Reconstrução, menos degradante do que a anterior e cujo exemplo mais acabado é a obra “A cabana do Pai Tomás” (1852). Contudo, a nova imagem do negro seguiu tributária da tradição da plantation. O crítico haitiano denuncia mesmo inteligências negras que, segundo sua opinião, tomam das palavras do negrismo mais tacanho para pretensamente operarem a reconstrução. Para René Depreste, nestas obras, tanto de autores brancos como de autores negros se percebe “o mesmo negrismo que animava os espetáculos dos menestréis ou acrobatas que pintavam o rosto com cortiça queimada antes de entrarem em cena.”

Depestre reconhece que tanto nos Estados Unidos como na América Latina, aos poucos surgem escritores que ultrapassam os limites do negrismo. Langston Hughes, Countee Cullen, Nicolás Guillén, Aimé Césaire, não por coincidência todos criadores negros, produzem um tipo de literatura que não exala o cheiro de rolha queimada. Sobre o caso brasileiro, René Depestre entende que há poucos poetas e escritores negros de fato comprometidos com a “reabilitação da raça negra”, ainda que Cruz e Sousa e Luis Gama, por exemplo, alcancem um bom domínio dos seus meios expressivos, não manifestam em seus escritos “as contradições de classe/raça que determinaram a vida do seu país”. O mínimo que se poderia comentar sobre a percepção de Depestre é que neste ponto ele foi apressado e na verdade não parece ter lido com cuidado a produção dos poetas. “Emparedado” de Cruz e Sousa e a balada sarcástico-crítica “Quem sou eu” (também conhecida como “Bodarrada”) de Luis Gama, bastariam para derrubar as alegações do haitiano de que ambos não capturaram com firmeza as contradições de classe/raça que determinaram e determinam a vida brasileira.

Vejamos agora dois poemas do negrismo de Manuel Bandeira. Macumba de pai Zusé: “Na macumba do Encantado/ Nego véio pai de santo fez mandinga/ No palacete do Botafogo/ Sangue de branca virou água/ Foram vê estava morta!”

Notar no poema a imagem que tenta reduzir as manifestações rituais de origem africana a coisas que têm parte com o demônio. Para o senso comum expressões como magia negra ou mandinga se inserem numa área semântica indicativa de feitiço cuja intenção é causar danos, propondo-se a destruir ou ferir outrem. Bandeira pratica uma variante do racismo recreativo apelando à oralidade negra como “fala errada”, daí irrompe no verso a expressão Zusé (José), ou em outro poema Zizus (Jesus). São mobilizados os conhecidos preconceitos de raça e linguístico em tom zombeteiro. A aura do poético torna inofensivo o conteúdo da agressão racial.

A partir de um viés carnavalesco de que se beneficia parte da poética de Bandeira, tudo o que acontece nos versos evoca um culto religioso de caráter sincrético-fetichista, a princípio ou pretensamente, afro-brasileiro. Essa imagética, no entanto, transfere à religiosidade afro-brasileira acepções batidas e rebaixadas, e repisa a concepção preconceituosa em que esses cultos e sua signância ritualística são vistos como “coisa do demônio”. Enfim, o que se desenrola diante de nossos olhos não passa de uma representação distorcida e definitivamente menor dos signos que dizem respeito ao aspecto filosófico, espiritual e místico da cultura afro-brasileira.

Em “Murmúrio d’água”, Manuel Bandeira evoca nostálgico sua infância de menino da casa-grande. A imagem da ancestralidade negra vem à superfície dos versos como uma condenação. Enebriados pela música do poema acompanhamos um discurso circunscrevendo essa ancestralidade ao desvio da escravidão no Brasil (perversa narrativa de origem imposta em termos ontológicos às diásporas africanas). Murmúrio d’água serve à perfeição como uma forma de redução, de confinamento, que, de resto, evoca um vago preconceito por sob a capa da compaixão. A dor e a alegria do “povo negro” seriam invariavelmente emanações da escravidão no Brasil do período colonial? É como se seu sofrimento e a desejada superação fossem meros sucedâneos da escravidão, sintomas enclausurados aquém e além de outras chances e predicações relativas à condição humana. Segue o trecho final do poema: “(…) A minha mãe ouvi dizer que era minh'ama/ Tranquila e mansa./ Talvez ouvi, quando criança,/ Cantigas tristes que cantou à minha cama./ Talvez por isso eu me comova a aquela mágoa./ Talvez por isso eu me comova tanto à mágoa/ Do teu rumor, murmúrio d'água…// A meiga e triste rapariga/ Punha talvez nessa cantiga/ A sua dor e mais a dor de sua raça.../ Pobre mulher, sombria filha da desgraça!// — Murmúrio d'água, és a cantiga de minh'ama.”.

Bandeira manifesta uma forma de solidariedade herdeira de concepções ready-mades sobre as quais se equilibra a curiosidade quanto à vida dos negros – seja nas senzalas, seja nas periferias, seja junto ao calor da cozinha do senhor –, o fetichismo a respeito de como acontece esse ser negro que sucumbe, por assim dizer, ao quantificador o povo negro. Cada sujeito negro estaria fadado a exprimir apenas isto e mais nada: uma abissal alma negra, porém como decalque do raciocínio negrista-essencialista e de base racial; uma interioridade tão desconhecida quanto exaustivamente parafraseada por emblemáticos pensadores e artistas do modernismo.


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895